Saudade de esperança

por Wanderley de Mattos Teixeira Neto

TÍTULO
Ar Condicionado
DIREÇÃO
Fradique
PAÍS
Angola
ANO
2020

Quando Ar Condicionado tem início, o cineasta Fradique interpela o espectador com verbetes que remetem ao título da obra: “ar”, “condicionar” e “ar condicionado”. O nome dado ao artefato criado no ocidente para regular a qualidade da condição interna de qualquer ambiente, proporcionando sensação de conforto ao usuário, independente das características climáticas externas, é explanado na introdução da ficção de Fradique como uma antecipação das questões centrais do filme. Na tela, serão exibidos modelos de vida usufruídos sob certas circunstâncias ou imposições, fadados em algum momento ao fim. 

De um lado, temos um elemento essencial para a vida humana, mas também um aspecto, uma aparência como indica o verbete (“ar”); do outro, um verbo que aponta para situações de dependência, contrapartida ou aquisição mediante circunstância ou perda (“condicionar”). Juntos, eles formam um substantivo composto representativo de um bem de consumo que nos faz suportar as variações climáticas cada vez mais instáveis por força das intervenções predatórias do homem, o “ar condicionado”. 

Em Ar Condicionado, o conforto em Luanda é condicionado à posse do artefato que dá título ao filme. O ar condicionado é um bem adquirido sob as circunstâncias do capitalismo: relações comerciais desiguais em vantagens entre oriente e ocidente; a criação de necessidades de consumo e a depredação do meio ambiente sem o menor remorso. O filme, então, apresenta um cenário que beneficia muito pouco a população angolana pós-independência e pós-guerra civil, a geração dos anos 2000 em diante, o “futuro”. Todos ainda estão assimilando os espólios de lutas cujo desfecho amplificou ainda mais as desigualdades sociais do país ao invés de amortecê-las. 

Fradique propõe um cenário no qual a população da capital de Angola entra em crise, sobretudo as elites, quando surpreendida por um fenômeno: os aparelhos de ar condicionado começam a cair das casas das pessoas. O grande mistério por trás da crise dos ares condicionados causa a comoção de autoridades e especialistas, levando até a teorias conspiratórias sobre acordos entre Angola e China para colocar no mercado ventiladores. Duas grandes preocupações ficam evidentes na crise: a primeira é o calor insuportável e a segundo é o risco que a queda dos aparelhos traz para a vida dos transeuntes da cidade. No entanto, o longa de Fradique aponta para questões que estão além desses diagnósticos superficiais da mídia local. 

Uma das construções mais perspicazes do cenário hipotético de Fradique tem relação com a alienação que esse modelo de vida importado (o do ar condicionado, assimilado como uma necessidade natural) parece provocar nos cidadãos de Luanda. É como se a presença desse objeto no cotidiano dos angolanos fizesse com que eles não só suportassem, mas esquecessem o calor e também toda a situação de miséria no seu entorno, algo perceptível pelos cenários apresentados por Fradique, construções verticais de aparência decadente. Quando os aparelhos de ar condicionado saem da vida dessas pessoas sem sobreaviso, é como se todos saíssem de um transe e se deparassem com a realidade das suas vidas de fato. Diante da lacuna deixada pelo ar condicionado, o calor e a ruína arquitetônica gritam e as pessoas entram em luto e desespero nos funerais dos aparelhos, seus entes queridos.  

Ar Condicionado dialoga com toda uma filmografia do continente de maneira curiosa. Com recorrência, os cinemas africanos costumam estabelecer em suas histórias comentários sobre a assimilação de um pós-colonialismo. Em Ar Condicionado não seria diferente.  

Na distopia de Fradique, um guarda e uma empregada doméstica são os protagonistas. Matacedo (José Kiteculo) e Zezinha (Filomena Manuel) assimilam o caos ao redor enquanto trazem dentro de si passado, presente e futuro da história de Angola. Os protagonistas de Ar Condicionado pertencem a diferentes gerações angolanas, com percepções distintas sobre a realidade de Luanda, e isso é sentido pelo público conforme os amigos e colegas de trabalho estabelecem trocas sobre suas óticas da crise local.

Zezinha soa como uma visionária. Nas linhas iniciais do seu primeiro diálogo com Matacedo, a personagem diz: “Quem manda de verdade é o vento, não o vento dos ACs (ares condicionados), o vento do mar…”.  A personagem percebe a borbulha de crises econômicas e ambientais que castigam ainda mais quem não vive nos grandes centros de poder e como a natureza está acima do capitalismo predatório, respondendo aos abusos do homem em algum momento e de maneira tão implacável que não há tecnologia que reverta abusos.

Como complemento à visão de Zezinha, Fradique nos traz Matacedo, personagem que perambula pelas ruas de Luanda resolvendo algumas demandas para o seu patrão. Conforme Matacedo transita por esses espaços, a câmera o acompanha e registra os gritos e choros de luto pela perda dos aparelhos. Em dado ponto, o personagem parece alheio a toda a comoção, mas gradualmente ele se junta ao pesar pela realidade decadente que a perda do climatizador escancara. No encontro com o Sr. Mino (David Caracol), um comerciante de materiais elétricos que recicla peças descartadas em prol da construção de um próprio ecossistema de lembranças da Angola do passado, Matacedo parece ter um gostinho dos resquícios da esperança de dias melhores da geração africana dos anos de 1970.

A nostalgia dos sonhos de Matacedo é confrontada por Zezinha, que alerta o amigo para ter cuidado com enfrentamentos da vida como o do Sr Mino. A geração de Zezinha entende a experiência do passado como algo marcado pela frustração da impossibilidade de concretização de sonhos. A independência do país é uma trivia histórica – na realidade, o mundo segue opressor. O caos deixado pela perda dos ares condicionados confirma a visão de Zezinha e traz à tona o lamento e a saudade por um certo espírito do tempo em Matacedo.  

Ar Condicionado faz uma revisão sobre o olhar do cinema do continente ao dimensionar uma espécie de ressaca vinda das expectativas frustradas do colonizado com a impossibilidade de espelhamento dos padrões de vida vendidos pelo opressor, mas também com sua emancipação no mundo. Enquanto filmes como Touki Bouki / A Viagem da Hiena (1973), de Djibril Diop Mambéty, e Soleil Ô (1967), de Med Hondo, apresentam comentários enérgicos à ocidentalização da África e à ilusão de ascensão social e emancipação pós-independência, Ar Condicionado (2020) observa para a história contemporânea do próprio continente com uma certa melancolia, a saudade da esperança de Matacedo. A realidade esmagou a vida dos personagens do filme de Fradique a ponto de eles sentirem falta do tempo que nutriam alguma expectativa de melhora daquela realidade. A aspiração em Ar Condicionado é pela sensação da esperança. 

A canção “Matacedo”, que leva o título do personagem principal, dá o tom dessa constante sensação de ressaca presente no filme de Fradique. Em dado trecho, a canção do longa diz: “Quando fecho os olhos eu imagino um país novo. Quando fecho os olhos eu me lembro de novo. Tudo era melhor no tempo que ainda me via”.  Os versos ecoam vivências de uma Angola cheia de expectativas. A esperança de uma vida melhor se transforma em ilusão na distopia de Ar Condicionado, soterrada pela perpetuação de desigualdades econômicas e sociais em um cenário de explorações e alienação camufladas de progresso. Na Luanda do futuro de Fradique, a fé e o sonho por dias melhores, combustível da vida humana, se foram. Resta a saudade, sentimento que não nos é tão diferente do lado de cá do oceano.