Opacidades e ambivalências: diáspora, migrações e o cinema de Mati Diop
Em 1979, o cineasta mauritano Med Hondo estreia o musical político West Indies, no qual conjuga diferentes tempos narrativos em um mesmo espaço cênico – um navio negreiro –, e, ao passo que constrói uma política do espaço, encena o perverso rastro escravista que ressoa, ainda hoje, em práticas demagógicas e internacionalistas. Ao final do filme, uma sentença é anunciada: “a migração é a escravidão moderna”. Hondo integra a segunda geração de cineastas africanos, segundo proposição de Mahomed Bamba (2008), nominados de “cineastas do desencantamento”. Desiludidos com o fracasso da experiência pós-independência, essa geração evidencia em seus filmes menos questões nacionalistas do que renovações estético-estilísticas. As produções radicalizavam na linguagem do cinema africano, confrontando com mínimo decoro o imaginário que projetava na Europa uma vida afortunada.
A temática da migração, portanto, tornou-se presente em muitos dos filmes realizados após 1980. A viagem da Hiena (Touki Bouki, 1973), dirigido pelo senegalês Djibril Diop Mambéty, por exemplo, narra a epopeia do casal Anta e Mory que deseja partir para a França, território da esperança e da promessa do triunfo. Décadas mais tarde, é através do encontro com essas personagens, em especial com o intérprete de Mory, que Mati Diop, sobrinha de Mambéty, realiza o média-metragem Mille Soleils (2013), um documentário que trabalha a memória e a crueza da realidade para além dos delírios que acompanham a ideia de viver um futuro na Europa. Mati Diop, por sua vez, vive a diáspora francesa.
A diretora franco-senegalesa nasceu em Paris e é filha de pai senegalês. Como outros cineastas diaspóricos, Mati encontra-se em meio ao paradoxo de morar na Europa e apetecer fazer um cinema que aspire as realidades africanas. Desta forma, aproximando-nos do que pondera Bamba sobre essa nova geração dos cinemas africanos, (os cineastas) “utilizam sem complexo sua dupla identidade (francesa e africana) e aspiram a uma universalidade em sua obra” (BAMBA, 2008, p. 223).
Em 2009, pois, ela visita Dakar, capital do Senegal, para realizar a pesquisa que desencadeou em seu média-metragem. No entanto, ao chegar lá, diante da necessidade de se readaptar em uma terra desconhecida e se localizar em uma história que a precedia, Mati vê descortinar uma situação pouco reconhecível para seus sentidos ocidentais. À época, a cidade fervilhava em manifestações de uma juventude que não mais aceitaria a migração e a perigosa travessia como mais uma vala de desova de jovens africanos. Ante uma paisagem social e política bastante específica, e a partir de conversas com seu primo e os amigos dele, ela pôde observar e ter de maneira mais aguda a noção exata do simplismo e da condescendência com a qual as mídias ocidentais abordavam essa questão [1].
Foi então que percebeu que o cinema poderia ser um importante meio para colocar aqueles jovens no centro de sua própria história, e assim poder narrar a si mesmos. É da vontade de poder ecoar um discurso em primeira pessoa que surge Atlânticos (2009), curta-metragem com sua direção, que registra o relato da experiência da travessia de Serigne, um jovem senegalês, e a escuta atenta de seus amigos que recebem a história com desconcerto e assombro. Mati reconhece, logo, a dimensão do espelho que desse processo resultou: ao dar a palavra para o protagonista, ela reconquista sua própria africanidade.
Still de Atlânticos Still de Atlânticos Still de Atlânticos
A questão da migração, porém, não estava esgotada, tampouco era finita. Para a diretora, a questão não se resumiria em uma experiência estrita de um sujeito, mas seria uma parte de algo mais amplo. Mati não havia terminado o que começou a dizer. Decidiu retornar a Dakar, e ao chegar à cidade a notícia de que Serigne estava morto a colocou diante de um dilema moral: em torno de que ela poderia continuar? Do desaparecimento? De uma ausência? Uma relevante transição eclode. Uma narrativa não seria construída pela perspectiva de quem se arriscou, mas a partir do sentimento de quem permanece. Aponta-se para uma transição para a palavra feminina.
Em Atlantique (2019), primeiro longa-metragem de Mati Diop, o espaço vertiginoso do oceano devora os jovens que se lançam em busca de um futuro. Dentre eles está Souleiman, por quem Ada é apaixonada. A partir daí, é construída uma fábula política em que o mar é elemento fantasmático, a febre uma invasora noturna, os mortos incansáveis almas, e as mulheres corpos abertos e a potência de reparação. No filme, os jovens mortos reencarnam em jovens mulheres, em sua maioria, para buscar justiça e rememorar paixões.
Tanto no curta como no longa, a juventude é encarnada como força vital, fazendo emergir da perda e da ausência a pujança que irá gerir rupturas. Se pela voz de Serigne ecoavam as ambivalências do mar – espaço de esperança e morte – e a fúria das ruas – espaço de ressonâncias –, pela voz de Ada ecoa a emancipação das mulheres e a ruptura com o paradigma patriarcal: ela recusa o casamento arranjado e vive a paixão que seu corpo pulsa. O devir negro do mundo vivenciado pelas personagens migrantes e desafortunadas aponta para os ecos do passado que dão sentido à experiência presente. Mirar a futuridade requer o reconhecimento de fagulhas do passado.
Para Mati Diop, o reconhecimento da história precedente, o conhecimento de si, da terra que a pariu e que a compõe são passos trilhados com e pelo cinema. Ela usa sua câmera como espectro da ancestralidade. Seu cinema tem tato, situa-se babatando o que o cerca, encarando quem está à frente, mergulhando no desconhecido familiar. Diante da tela terão eriçados os poros aqueles que reconhecem os seus e fabulam seu futuro, construindo, deste modo, formas de existir no mundo. A história de outrora ecoa, e, entre intervalos de opacidades e polissemias, é uma síntese histórica, política e pessoal.
[1] Disponível em https://youtu.be/tF6655xJoFY