Três Mulheres e um Deserto – notas sobre a violência em “Flatland”, de Jenna Bass

por Marcelo Esteves

TÍTULO
Flatland
DIREÇÃO
Jenna Bass
PAÍS
África do Sul/Alemanha/Luxemburgo
ANO
2019

O Karoo é tão plano que você pode ver seu futuro avançando por ele.” É de uma personagem feminina que não aparece na trama, mas cuja existência é evocada em diferentes passagens do filme, a fala mais emblemática de Flatland, o terceiro longa-metragem da jovem diretora sul-africana Jenna Bass. O Karoo – essa vasta região semi desértica localizada no interior da África do Sul, que ocupa cerca de um terço do território nacional – serve de cenário para a maior parte da ação de Flatland, que se apresenta como western contemporâneo, mas talvez fosse melhor definido como sendo a mescla de três diferentes gêneros cinematográficos clássicos: o faroeste, o road movie e o thriller policial. No entanto, reduzir Flatland a uma combinação de gêneros cinematográficos que o público ocidental é facilmente capaz de identificar implica perder de vista as particularidades do filme de Bass que se insere, ainda que disruptivamente, numa longa tradição de filmes sul-africanos ambientados no Karoo. A maior potência de Flatland reside na maneira como ele, uma vez estabelecido como um filme de gênero, explora habilmente as fissuras que seguem abalando as bases da  sociedade sul-africana pós-apartheid, tais como o racismo, as tensões interraciais, a violência, a misoginia, a xenofobia. Nesse contexto, o futuro que escrutinamos através de Flatland – esse futuro que avança pelo Karoo como um rolo de feno que desliza pelo deserto, como evoca a memória de uma das personagens – não é apenas o futuro de Natalie, Poppie e Cuba, as três protagonistas do filme, mas também o destino da África do Sul como um todo.    

A ideia de realizar um western nasceu embalada pela lembrança afetuosa dos filmes do gênero que Bass costumava assistir com o pai na infância. Como era de se esperar de uma diretora cuja filmografia vem sendo construída em torno de questões de gênero, raça, classe e poder, Bass subverte as convenções do western, gênero tradicionalmente dominado por personagens masculinos, para entregar o protagonismo de Flatland às mulheres. Utilizar o deserto do Karoo como cenário para um filme de faroeste, mais do que uma conveniência de produção, implica lançar suas personagens femininas em um espaço eminentemente masculino e fortemente ligado à herança da colonização africânder, isto é, um espaço dominado pela violência do patriarcado branco e, consequentemente, pelos fantasmas do apartheid. Ainda que recentemente o Karoo tenha servido de cenário para histórias de protagonismo negro, como nos recentes filmes sul-africanos Guerreiros de Marselha (Five Fingers to Marseilles, dir. Michael Matthews, 2017) e Sew the Winter to My Skin (dir. Jahmil X.T. Qubeka, 2018) – e a própria Bass se enveredou por esse cenário em seu filme anterior a Flatland, a comédia fantástica High Fantasy –, é notório que o espaço do Karoo, com suas fazendas de longas extensões de terra e suas pequenas municipalidades onde o africânder é a língua mais ouvida, está associado a uma longa tradição de filmes produzidos e falados em africânder, com elenco majoritariamente branco – que mobiliza um segmento muito particular do público sul-africano – e cujos enredos, via de regra, giram em torno da manutenção dos valores e do modo de viver da minoria africânder do país. De maneira disruptiva, Bass reivindica, pois, não somente o protagonismo feminino para um gênero eminentemente masculino, como também avança com suas personagens pelo espaço branco e masculino do Karoo para contar uma história que expõe o fracasso da utopia da igualdade racial, de classe e de gênero, impingida na agora combalida imagem da Rainbow Nation, a “nação arco-íris”, termo cunhado pelo governo logo após o fim do apartheid para sugerir um ideal de democracia racial na África do Sul.

Filme de fuga e perseguição, Flatland é também um filme de encontros. Encontros marcados pelo afeto, mas também pela violência de gênero, de raça e de classe. Quando a ação do filme de fato começa, três mulheres de ascendências distintas encontram-se em movimento pela paisagem do Karoo. A ingênua Natalie Jonkers (Nicole Fortuin) – mulher coloured, que acredita se comunicar com a mãe falecida através das conversas que entabula com seu cavalo – foge de um crime e de uma noite de núpcias marcada pelo estupro. Seu vestido de noiva ainda está manchado com o sangue de duas violências – o seu e o de sua vítima – quando ela escapa em busca da ajuda de sua “irmã” Poppie van Niekerk (Izel Bezuidenhout), uma adolescente branca de origem africânder, em estágio avançado de gravidez que, apesar de ser mais rebelde e independente que Natalie, mostra-se igualmente despreparada para a vida adulta. Juntas, Natalie e Poppie se enveredam no deserto fugindo a cavalo em direção à cidade de Joanesburgo. No encalço das duas logo estará a capitã Beauty Cuba (Faith Baloyi) – mulher negra, policial determinada, com um gosto kitsch para roupas e uma paixão incondicional por telenovelas. Beauty tem como missão provar a inocência do ex-noivo que acaba de sair da prisão e de se confessar autor de um crime que, Beauty sabe, ele não cometeu. 

A visão da carcaça ressecada de um animal sobre o solo seco, que antecede as imagens do matrimônio interracial que abre o filme, é indicativa de tudo o que de negativo está por vir. No Karoo de Flatland, as violências racial, de classe e de gênero se sobrepõem, e tanto podem acontecer numa parada de caminhoneiros bêbedos no meio da noite, quanto irromper num encontro à luz do dia entre duas mulheres – uma negra e uma branca – numa casa de fazenda no meio do deserto. 

Quando não se manifesta fisicamente, a violência em Flatland irrompe através do uso da língua. A maioria dos personagens do filme se comunica em africânder, utilizando algumas poucas vezes a língua inglesa. Apenas Beauty e seu ex-noivo Billy Duiker (Brendon Daniels) comunicam-se entre si usando o inglês, o que os diferencia dos demais personagens. Embora Japp (Eric Nobbs), antigo parceiro de trabalho de Beauty, a receba falando em africânder –“Beauty de Beaufort. O Karoo a trouxe de volta” –, deixando claro que Beauty já fez parte da vida nesse território, ela agora vive na Cidade do Cabo, na costa oeste do país, o que faz dela quase uma forasteira. Apesar de os personagens de Flatland serem capazes de se expressar fluentemente tanto em inglês quanto em africânder – o que é bastante comum num país multilinguista como a África do Sul –, a escolha da língua a ser falada em um encontro nunca é totalmente desprovida de alguma disputa por identidade. Antes do encontro no Karoo, quando Jaap retoma contato com Beauty por telefone, ele a elogia por ela estar falando africânder, ao que ela responde à queima-roupa: “Eu faço isso só por você, Jaap.”

Logo que chega à casa de Poppie, após ter vivenciado dois episódios de violência explícita, Natalie é submetida a mais um ataque, agora através da linguagem. Sanie van Niekerk (Kim Goncalves), tia de Poppie, exclama para a sobrinha, em africânder: “Que merda essa sua negra está fazendo aqui?”, utilizando-se da palavra “kaffir” (negra), termo considerado extremamente racista na África do Sul, cujo uso é completamente interditado socialmente. O mesmo termo será utilizado mais tarde – novamente na presença de Natalie e para seu constrangimento – por Theunis (Albert Pretorius), amigo de Branko (Clayton Evertson), “namorado” e pai do filho de Poppie –, para referir-se aos homens que assassinaram seu irmão na Cidade do Cabo. Em ambas as situações, reconhecendo a violência da linguagem, é Poppie quem sai em defesa da “irmã”. Há ainda outro episódio de violência verbal, desta vez mais insinuado do que explícito. Quando Natalie e Poppie estão tingindo os cabelos em um banheiro à beira da estrada, vendo as duas jovens juntas diante do espelho, uma mulher branca que acaba de entrar no recinto dispara maldosamente: “Adicionar leite azedo ao seu café não fará com que ele tenha um sabor melhor.” Desta vez, Natalie decide que é hora de reagir.

A violência subjacente às relações interraciais no Karoo permeia toda a narrativa do filme. Após uma conversa entre Sanie e Beauty, que mais se parece com um interrogatório policial cheio de tensões e insinuações, Sanie se despede aos gritos, em africânder: “Essa terra é nossa! Nosso passado! Nosso futuro!”, convocando, no filme, o fantasma da posse e da redistribuição de terras que assombra e divide brancos e negros sul-africanos até os dias de hoje. Mais dramático – por envolver desta vez duas das protagonistas cujo encontro no passado aparentemente se deu por afeição – é o diálogo de ruptura entre Natalie e Poppie. Desde o início do filme, Poppie trata Natalie como se elas fossem irmãs, uma vez que a mãe de Natalie trabalhou a vida toda como babá de Poppie, ocupando na fazenda dos Niekerk a função que antes havia sido da avó – e antes dela da bisavó – de Natalie. Mas quando a tensão entre as duas protagonistas atinge seu ápice, Natalie escancara para Poppie a verdadeira natureza da relação que existe entre elas, expondo as consequências de uma violência ao mesmo tempo racial e de classe: “Por que você diz às pessoas que somos irmãs? Você sabe que não somos. Minha mãe foi paga para ser sua mãe. E por sua causa eu não tive mãe!”.  

Enquanto se movimentam pelo território masculinizado do Karoo – Poppie chega mesmo a comparar o deserto ao peitoral “forte e liso” de um homem –, as três protagonistas estão expostas a todo tipo de agressão. Além da violência inicial sofrida por Natalie, que provoca seu movimento de fuga e desencadeia toda a ação do filme, e das inúmeras violências verbais a que ela é submetida, ela ainda precisa lidar com a instabilidade emocional e a violência psicológica do marido, o sargento Bakkies Bezuidenhout (De Klerk Oelofse), que está à sua procura; Poppie, por sua vez, é assediada e humilhada publicamente por Theunis, sob a mira de um revólver, diante de um grupo de caminhoneiros; nessa mesma sequência, vindo em socorro de Poppie, de arma em punho, Beauty tem sua peruca arrancada por um dos caminhoneiros, uma forma de ridicularizá-la e de deixar claro que não existe, nesse canto perdido do país, nenhum tipo de respeito pela autoridade policial de uma mulher: “A vadia pensa que é um homem!”. A fala ofensiva do caminhoneiro permite a Beauty revelar sua opinião desiludida sobre a condição dos homens sul-africanos e, por extensão, sobre o país como um todo: “Você não pode ser um homem nesse país. Até os homens estão sendo fodidos”. Ao que outro caminhoneiro replica: “Eu quero foder esse país, cara!”. O ideal utópico da nação democrática e justa nascida dos escombros do apartheid é posto por terra, assim como o foi na sequência imediatamente anterior, quando Natalie questiona Branko sobre as fotos de diferentes mulheres nuas que ele carrega em sua carteira: “É minha Rainbow Nation”, ele diz maliciosamente. 

De fato, quase todos os homens de Flatland têm comportamentos duvidosos. Jaap passa a maior parte da trama protegendo seu filho Bakkies e imputando a ele a pecha de “eterno menino”, uma maneira evidente de repreender o filho, mas, também, de isentá-lo da culpa pelos repetidos atos de violência que Bakkies comete contra a esposa. Além de suas atitudes racistas em relação a Natalie, Theunis revela sua misoginia na primeira oportunidade em que se vê sozinho com Poppie à beira da estrada. E Branko, o predador “namorado” de Poppie, rapidamente transfere seu interesse sexual para Natalie, para terminar sua jornada escondido embaixo de um caminhão, com um cachorro, temendo ser preso pelo crime de pedofilia. De todos os personagens masculinos, talvez apenas Billy demonstre algum caráter, fazendo valer os esforços de Beauty para livrá-lo da cadeia.   

A desigualdade social e a xenofobia, dois poderosos combustíveis que estão na base de muitos eventos de violência que assolam a África do Sul, também podem ser vistas em diferentes passagens do filme. Na medida em que Beauty se aproxima de Beaufort West, a visão de alojamentos de dormitórios e de prédios em ruínas cede lugar às imagens do bem cuidado centro arquitetônico da cidade, com suas casas de jardins aprazíveis. No hotel elegante onde Beauty entra para se hospedar, sob o olhar ao mesmo tempo debochado e judicativo de uma funcionária, ela é a única pessoa negra entre os presentes: jovens asiáticos – um lembrete dos agressivos investimentos que a China vem fazendo no continente africano? – e mulheres brancas que fofocam em africânder. As pessoas negras e as habitações mais pobres em ruas de terra batida surgem apenas quando Beauty se dirige novamente à periferia para conversar com as mulheres que conhecem a relação de Natalie com a família de Poppie. Curiosamente, as mesmas mulheres – aparentemente coloureds como Natalie – que denunciam o racismo dos van Niekerk, classificando-os como “aquele tipo de brancos, entende?”, são as que tecem comentários xenofóbicos em relação aos somalis que vivem na região. 

Quando as três protagonistas de Flatland finalmente se encontram, descobrimos que, assim como a recente noite de núpcias entre Natalie e Bakkies, o noivado entre Beauty e Billy, ocorrido quinze anos antes, foi marcado pela brutalidade, numa demonstração clara de que o círculo vicioso da violência no qual as mulheres de Flatland estão presas atravessa gerações. O encontro e a semelhança entre as histórias de Beauty e Natalie, no entanto, não empurra as três protagonistas na direção de algum vínculo mais forte de sororidade e empatia. Pelo contrário. Natalie será incapaz de manter o juramento de nunca abandonar Poppie. E Beauty, sem demonstrar qualquer interesse pelo destino de Poppie, utilizará Natalie na barganha para recuperar a liberdade de Billy. Beauty, que no passado entregou o noivo à justiça, agora está disposta a passar por cima das leis para recuperar o homem que ama – emulando, assim, os gestos melodramáticos das novelas que ela assiste regularmente na TV. 

O encontro de Natalie, Poppie e Beauty no deserto dá novo sentido à jornada de cada uma e reconfigura suas trajetórias. Nunca chegaremos, no entanto, a ver essas três mulheres fora dos limites do Karoo. Gradualmente, em sua jornada de fuga e autoconhecimento, Natalie se transforma: troca seu sobrenome de solteira pelo sobrenome africânder do marido, troca o vestido de noiva pelas roupas de Poppie, tinge seu cabelo de loiro, perde seu cavalo – elemento de comunicação com a mãe – e segue em sua fuga em um automóvel que não lhe pertence, incorporando algo da independência e determinação de Beauty ao se apropriar dos requintados óculos de sol da policial. Poppie, que havia rompido os laços familiares que a protegiam até então, retorna ao ponto de partida, amparada por Jaap e Bakkies, em um nem tão improvável pacto de proteção que reúne, num mesmo núcleo, os personagens brancos de origem africânder da trama. Sem ter como retornar com Billy à sua vida pregressa nem como avançar por conta de suas perdas materiais, Beauty permanece momentaneamente bloqueada, estanque na banheira de um hotel de beira de estrada.

Como é ser mulher na África do Sul hoje? Em que estado se encontram as relações étnicas entre os sul-africanos negros e os de ascendência africânder quase três décadas após o fim do apartheid? Como as relações de poder, branco e patriarcal, estão sendo subvertidas em espaços distantes dos grandes centros urbanos sul-africanos como o do Karoo? Como bom filme que é, Flatland não tem a pretensão de entregar nenhuma resposta ao espectador. Quando a jornada de Natalie, Poppie e Beauty termina na tela, saímos do cinema com mais perguntas do que respostas nas mãos. E, embora o rolo de feno permaneça rolando pelo deserto do Karoo em direção ao futuro, não somos capazes de precisar que futuro será esse e nem mesmo quando e como ele chegará.