Aristóteles já dizia que a verossimilhança é mais importante do que a veracidade de um fato ao se contar a história. É preciso construir um caminho lógico para que o público embarque na trama e se envolva com ela considerando-a crível. Loukman Ali, roteirista e diretor ugandês, parece não confiar no próprio storytelling ao insistir em informar ao público que, por mais absurdo que pareça, aquilo que estão vendo é baseado na realidade. Como se buscasse um respaldo para validar sua obra. Só que isso acaba afastando o espectador e prejudicando a fruição de A Garota do Moletom Amarelo.
Na verdade, a trama se vale de uma linguagem irônica com interferências didáticas que lembram em algum nível o média-metragem Ilha das Flores de Jorge Furtado. O tom da trama flerta também com o humor dos irmãos Coen – não por acaso, Fargo aparece em destaque na filmoteca do protagonista Jim na primeira cena. O estranhamento que beira o absurdo é muito próximo, assim como a temática investigativa. Guardadas as proporções, a estrada também tem algo de semelhante.
Loukman Ali brinca com referências de Hollywood ao mesmo tempo em que resgata costumes e histórias do seu país para criar um thriller original. Um road movie instigante que poderia apostar mais em suas próprias escolhas. Por mais estranho e incrível que aquilo tudo seja, o terceiro ato, em especial a revelação final, nos evoca reflexões diversas sobre preconceitos, injustiça, vingança, machismo e mesmo a estrutura da sociedade em Uganda.
A estética da obra traz referências do blaxploitation em alguns momentos, em especial no terceiro ato, com cores saturadas e algumas escolhas de planos, como o close na personagem ao ver quem está no banheiro, ou mesmo o ritmo da cena do tiroteio. A trilha sonora também faz eco às obras dos anos 1970. Isso sem falar que, apesar da camada superficial do thriller, há diversas camadas com questões, de políticas a afirmativas, pinceladas na trama.
A escolha do ponto de vista em que o roteiro é construído nos faz ficar confusos, assim como o policial Patrick, que só tem as informações que lhe contam. Mesmo os flashbacks vão narrando a história da personagem, não sendo necessariamente o que aconteceu de fato. Isso pode dar a sensação de engano, já que é um pacto ficcional vermos o que de fato aconteceu. Mas aí também está uma estrutura criativa e surpreendente, se observarmos os pequenos detalhes.
São diversos temas e questões levantadas no pano de fundo da obra que mereciam um tratamento melhor. Fica tudo muito solto, sem ser trabalhado. Muitas pistas passam quase despercebidas. É curioso, por exemplo, como a questão religiosa e da colonização do continente africano surgem quase de maneira displicente no meio da trama e acabam construindo um eco importante com a resolução da obra, demonstrando que a principal história que estávamos acompanhando não era aquela que pensávamos que fosse.
A pedofilia, aborto clandestino e outras nuanças em relação a essa trama também vão sendo apresentadas de maneira bastante sutil, como um início de notícia no rádio que Jim troca rapidamente de estação. Tudo isso demonstra que as viradas do terceiro ato e as revelações não são Deus ex-machina, ou seja, soluções mirabolantes que poderiam ser consideradas erros de roteiro. Até por isso, a insistência das informações de que “essa ainda é uma história real”, soa descabida e nos tira da trama, em vez de nos ajudar a embarcar nela.
Boa parte da trama se passa dentro do carro do policial, no qual o diálogo conduz a ação incitando o nosso imaginário. Algo parecido com o que Tarantino faz em Cães de Aluguel, ainda que não pareça ser essa a principal referência de Ali. Mas não deixa de ser um mérito do filme prender nossa atenção por tanto tempo dentro daquele carro com o diálogo dos dois homens. A maneira como o senhor no banco de trás pouco interage, mas muito observa também nos deixa instigados e dá indícios sobre o que está por vir.
Estamos o tempo todo buscando desvendar o que está acontecendo ali e tudo nos traz desconfiança. Talvez o grande problema da escolha do roteiro é não construir a empatia com o protagonista de imediato. Ficamos entre Patrick e Jim, não estamos colados a nenhum deles. Jim é o que chega, não sabemos sua história, mas ele é que possui a curva de protagonista. Foi sequestrado na primeira cena, torturado, e aparece no meio da estrada mancando, sangrando e pedindo ajuda. Porém, apesar de tudo isso, não sabemos o que realmente aconteceu, não sabemos quem é ele, nem se é mesmo uma vítima ou uma ameaça.
De alguma maneira, a narrativa nos coloca mais próximos do policial Patrick, desconfiados de tudo e de todos, tentando entender as peças daquele tabuleiro. Porém também não nos ligamos completamente, já que não sabemos quase nada sobre ele. E é difícil acompanhar uma trama sem construir um elo e empatia com ao menos uma personagem. Por mais estranho que pareça, talvez, o roteiro nos aproxime do velho atrás do banco, o que faz muito sentido com o final.
Apesar de pouco interagir, o velho homem chama a atenção. A começar pela estranha situação de estar algemado em um carro policial sendo apenas uma testemunha de um crime. “Se você sentasse atrás de mim também estaria algemado”, explica Patrick. A cautela excessiva do policial pode soar como paranoia e até mesmo injustiça. Depois, porque a câmera busca seu olhar observador em diversos momentos, assim como constrói o contra plano, detalhando algumas coisas que ele vê. Não seria estranho dizer que, no final, o verdadeiro protagonista seria ele.
A Garota do Moletom Amarelo possui diversas qualidades e pontos positivos – não por acaso foi destaque em diversos festivais, inclusive na Mostra de Cinemas Africanos. Algumas escolhas, no entanto, acabam prejudicando a imersão completa na trama, assim como os importantes temas levantados ficam superficiais demais, o que pode gerar más interpretações. De qualquer maneira, é uma obra curiosa que consegue prender nossa atenção e deixar refletindo ao final da sessão.