Fábulas sem moral

por Gabriel Araújo

TÍTULO
Juju Stories (Juju Stories)
Direção
Michael Omonua, Abba Makama e C.J. ‘Fiery’ Obasi (Surreal16 Collective)
País
Nigéria
Ano
2020

“Em Lagos, há loucos por todo o lado. O que está perseguindo esse homem? […] Tenho que sair desta cidade.”

O formato da fábula e a ideia de moral estão, por definição, atreladas uma à outra. Como um símbolo eficaz de transmissão de valores, essas histórias persistem ao longo do tempo, ganhando diferentes roupagens e elementos em cada cultura ou contexto. Para que sejam facilmente apreendidas, as fábulas devem prescindir de uma linguagem simples, acessível, que convença seus interlocutores a seguirem a lição que desejam compartilhar. Desse modo, o risco de simplificar a complexidade da vida e das relações humanas existe em qualquer criação que as tenha como base.

Juju Stories (2021) assume esse risco. A fábula é um dos formatos escolhidos pelo menos em duas das três histórias da antologia dirigida por Michael Omonua, Abba Makama e C.J. ‘Fiery’ Obasi, membros do Surreal16 Collective. As narrativas, todas conectadas ao juju – histórias de magias, bruxas e espíritos que rondam a Nigéria – partem de certa simplicidade. Em Love Potion (Poção do Amor), são narradas as consequências da escolha de uma mulher apaixonada, que decide enfeitiçar um homem comprometido para ser correspondida. O conto Yam (Inhame) deixa evidente seu enredo já no início da história, quando um homem lê a seguinte manchete: pessoas estão se transformando em inhames após pegar um bolo de dinheiro deixado nas calçadas de Lagos. Suffer The Witch (Deixe a Bruxa Viver), por sua vez, acompanha os acontecimentos que envolvem uma bruxa, a melhor amiga dela e o garoto do internato por quem a sua colega nutre uma paixão.

Quando olhamos para essas narrativas, ao menos três temáticas ganham contornos e enredos específicos ao considerarmos a linguagem da fábula: a cobiça, o egocentrismo e o ciúme. No entanto, o Surreal16 Collective parece reconhecer os perigos de simplificação contidos em lições de moral, e traz, para Juju Stories, alguns dos aspectos que compuseram a matéria de seus trabalhos prévios. O surreal e a abstração, por exemplo, estão presentes tanto na mistura entre ciência e feitiçaria que acontece durante a confecção de perucas mágicas do curta Hello, Rain (2018); quanto nas representações psicodélicas de um encanto à beira-mar no filme Bruja (2017), ambos do diretor C.J. ‘Fiery’ Obasi. Quando olhamos para a filmografia em conjunto, é possível perceber que Juju Stories se alimenta e amplia parte das estratégias utilizadas nas obras anteriores, passando a dialogar também com outros gêneros cinematográficos, como o horror, a fim de construir representações que se aproximem das crenças populares que envolvem as culturas nigerianas.

Detalhes ajudam a pincelar essa amálgama entre real e surreal, entre fábula e lição, mesmo que estejam fora do foco principal das narrativas. Embora não apareça enquanto tema substancial de nenhum capítulo, depreendemos a força do neopentecostalismo em Lagos. A leitura do diretor sobre a religião fica perceptível, por exemplo, no modo como Abba Makama enquadra as igrejas e os símbolos cristãos em Yam – signos que surgem como “olhos que tudo veem”, sempre no momento em que os personagens estão planejando ou prestes a fazer algo moralmente questionável. As escolhas cenográficas desse capítulo também reforçam essa relação entre emblemas estéticos e narrativa. Ao fazer com que uma releitura africana de O Grito, pintura do norueguês Edvard Munch, esteja posicionada no centro do plano que abre e fecha o segmento, Makama traça um diálogo direto entre o horror proposto pelo filme e a angústia que sufoca seus protagonistas.

As expressões das personagens, que eventualmente se cruzam entre os três capítulos, também colaboram para traçar distintos contornos dessa relação. O semblante, digamos, maquiavélico, que Mercy (Belinda Agedah Yanga) assume enquanto Leonard (Paul Utomi) bebe o chá com juju em Love Potion muito se assemelha à constante feição de Joy (Nengi Adoki), a bruxa do terceiro capítulo que está ali, à espreita, sempre tramando algo. As atitudes de ambas, contudo, funcionam como chaves para entender as diferenças entre as identidades de cada uma. Enquanto esse olhar frio é ligeiro em Mercy, ele integra a personalidade de Joy. Pois ao passo que Mercy logo entende o peso das projeções que construiu enquanto apaixonada e decide voltar atrás na decisão que tomou, Joy não exprime culpa nem mesmo frente às tragédias que causa, disposta a fazer o que for necessário para atingir suas vontades.

Por todas essas questões, não parece justo fazer uma leitura simplista em relação ao longa, interpretando-o como uma cartilha que apresenta “o que acontece” quando você faz algo  “correto” e qual seria sua punição caso fosse pelo caminho “errado”. Por mais que essa interpretação seja sedutora, Juju Stories não pretende atuar como a balança da moral. O que não significa que não possamos questionar o filme em alguns momentos. Por vezes, a caracterização plana de alguns personagens (especialmente as femininas) reproduz a linguagem simplista de certas estórias populares. A figura de Joy, a bruxa, exprime tanto um exemplo para essa observação quanto um possível escape dela. 

Ora, por mais que Joy faça bom uso do mistério que envolve a sua presença, ela pode ser facilmente enquadrada, a partir do que Obasi constrói, como um mero sinônimo de lascividade e sordidez. Isso está no modo como ela seduz e ataca Ikenna (Timini Egbuson), tal como uma sereia que leva seus amantes para o fundo do mar. Contudo, ao fim do capítulo, Obasi faz com que a narrativa desvele camadas de sua complexidade que, até aquele momento, se manifestava apenas nos detalhes. E o beijo que a bruxa rouba de Chinwe (Bukola Oladipupo), sua melhor amiga, antes das duas alçarem voo, apenas reforça a bem-vinda dubiedade da personagem.

Mesmo se ele estiver sofrendo, só sorria. É a melhor maneira de sobreviver aqui”. O diálogo, presente em Rehearsal (2021), filme prévio de Michael Omonua, um dos membros do Surreal16Collective, também ajuda a elaborar um pensamento sobre Juju Stories. Afinal, na medida em que a magia conforma cada uma dessas narrativas, em modo e grau diferentes, ela se configura como protagonista e narradora das questões políticas e sociais da Nigéria contemporânea, constantemente retratada pelo coletivo com ironia e irreverência. Assim, Juju Stories não se preocupa em diferenciar o que simbolizam aparições e o que se apresenta como concreto, tirando, tal como a fábula, aprendizados dessas correlações. Tudo é fantasia. Tudo é real. E é nesse mundo de loucos que essas pessoas vivem.

Esse texto contou com a revisão de Lorenna Rocha