Retratos da Resiliência

por Laiz Mesquita

O que fazemos quando perdemos as esperanças? Buscamos um novo motivo para viver. Ou para morrer. Ao menos é isso que acontece com Mantoa, protagonista do filme Isso não é um enterro, é uma ressureição (This is not a burial, it`s a resurrection), filme sul-africano com a delicada direção de Lemohang Jeremiah Mosese e a belíssima cinematografia (direção de fotografia) de Pierre de Villiers.

Mantoa é uma mulher de 80 anos que já tendo vivenciado o luto de seu marido, filha e netos, enxerga a benevolência divina através do convívio com seu filho, único parente ainda vivo. No entanto, sua fé é gravemente abalada quando a morte lhe leva seu último herdeiro.

O filme se inicia com uma batalha turbulenta, na qual uma mulher em frenesi, com uma lança na mão, enfrenta um cavalo. A câmera acompanha a cena de maneira igualmente frenética, com movimentação instável e uma velocidade de obturador muito lenta, o que nos oferece uma imagem com baixa nitidez, causada pelo desfoque de movimento.

Composta por cores bem saturadas, a cena possui um vermelho marcante que intensifica a sensação de agitação. Uma multidão acompanha a mulher e parece querer contê-la. Tudo isso somado à montagem com imagens sobrepostas resulta em uma cena confusa, angustiante e de uma plasticidade encantadora.

Isto é apenas o começo. E o letreiro com o nome do filme nós da alguns segundos de respiro que logo são invadidos pela curiosidade incitada pela cena seguinte. Algumas pessoas parecem estar em uma espécie de festa, regida pelo suave som de um toque de lesiba (instrumento musical típico de Lesoto), mas por estarem sempre na penumbra, mal vemos os seus semblantes.

A câmera percorre o ambiente em um suave movimento panorâmico nos permitindo conhecer o ambiente e as pessoas com calma e sutileza, assim como toda movimentação de câmera desta cena. Mesmo quando o enquadramento revela o griô (narrador), que nos acompanha durante todo o filme, a câmera se mantém levemente distante como alguém que respeitosamente não deseja invadir o seu espaço. Além de funcionar como um reforço ao mistério.

Com iluminação em cores fortemente saturadas, esse ambiente nos apresenta um contraste que dialoga com uma reflexão constante na narrativa: a distância e a aproximação entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o nascimento e o funeral. Essa relação de distância e pertença se apresenta nesta cena através do uso das cores em diferentes cômodos.

No primeiro encontramos uma iluminação com predomínio da cor azul e poucos feixes de luz quente, enquanto no segundo o tom quente prevalece, possuindo pequenas incidências de luz azulada. Tal qual diz o griô que “os sinos falam quando as pessoas não conseguem”. Aqui, as cores nos informam sem que seja preciso usar qualquer palavra.

Rompendo a escuridão vemos uma clara paisagem de Lesoto, enquanto o griô nos conta sobre a chegada do filho de Mantoa. O uso de planos abertos nos traz um distanciamento das pessoas que estão a caminho da casa da protagonista.

Logo, Mantoa aparece em um plano intimista e iluminação levemente mais fria e dessaturada que as imagens dos seus visitantes. Esta mudança expressiva preanuncia uma notícia nada agradável.

A anciã que estava cantando feliz, vai interrompendo o canto e mudando a expressão ao perceber que o filho esperado não veio. Este mesmo tipo de recurso luminoso é utilizado em outras cenas tristes do filme, como na morte inesperada de uma criança do vilarejo.

A imagem de Mantoa é o primeiro plano fechado ao qual temos acesso. Podemos finalmente ver uma personagem de forma clara, com suas feições e detalhes bem visíveis, relevando a sua dor e decepção. O quadro vai se fechando cada vez mais na viúva, como se representasse as próprias pessoas que se aproximam.

A decisão de não expor a imagem dos mensageiros torna a cena ainda mais expressiva, pois assim acompanhamos de perto todo o crescente desespero da personagem, que fica nervosa com a ausência do filho. Ouvimos apenas a voz inconformada de Mantoa, que logo se torna inaudível. Seus lábios continuam a se movimentar, mas escutamos apenas a música extra diegética que domina a sonoridade da cena.

A câmera então inicia um movimento de tilt down (movimento vertical para baixo realizado em torno do próprio eixo da câmera) até aproximadamente a altura dos joelhos da protagonista, revelando parcialmente duas pessoas que depositam malas aos pés de Mantoa. A ação dos mensageiros nos confirma o que a triste senhora tanto temia: a morte de seu filho.

A câmera, então, volta a subir em tilt up com zoom suave, se aproximando do rosto da anciã. Enquanto isso, o narrador releva que Mantoa já chorou e orou muito por todas as mortes da sua família. O movimento de retorno da câmera ao nível do rosto da viúva em planos cada vez mais fechados nos permite perceber o seu tremor facial e a perda das esperanças.

Logo a câmera inicia um novo movimento de tilt up, agora em direção ao céu. Então o narrador compartilha conosco que com a morte do filho, anciã perdeu a crença na bondade divina e que por isso não irá mais chorar e nem mesmo olhar para o céu. E a imagem celestial passa a ficar desfocada.

Esse uso da imagem como ratificador da narração é utilizado em diversos outros momentos do filme, como quando em meio à reclusão do luto o griô comenta o estado de Mantoa e afirma: “Além de Deus, a realidade se tornava cada vez mais distante, até que se tornou escura”. E vemos uma tela preta, seguida por uma cena de escuridão em uma noite chuvosa.

A fotografia de Villiers se apresenta no filme como forma de aproximar os distanciar personagens. No velório do filho, a movimentação de câmera reforça a intensa movimentação de cena, trazendo uma proximidade entre Mantoa e o Padre, que em contradição com os demais personagens, se encontram estáticos. Ambos dividem dores parecidas. Ela olha atenta o corpo do filho e ele observa o horizonte.

O luto da protagonista é marcado pela reclusão. E nestes momentos, a anciã se apresenta quase sempre silhuetada ou na penumbra. Sua casa é colorida com tons contrastantes e a discrepância entre as cores vividas-iluminadas e a escuridão que banha Mantoa, reforçam a mudança de vida da personagem. Sua casa inspira a vida, mas a sua alma está em busca da morte.

Alguns planos desta cena parecem verdadeiras pinturas, com cores fortemente saturadas e pouquíssima movimentação em quadro. Isso se repete em alguns outros trechos do filme. Em sua maioria, momentos de sofrimento.

Em seu enclausuramento, Mantoa é registrada quase sempre pelas costas, favorecendo ainda mais à sensação de isolamento vivida pela personagem. Não conseguimos ver o seu rosto ou distinguir com clareza suas expressões faciais, mas sua inercia e postura corporal nos apresentam sua dor. Enquanto de fora da casa, a comunidade e o padre tentam se comunicar com ela, a anciã fica estática olhando para a parede. A fotografia, então, novamente reforça a fala do griô através de um plano detalhe da parede que é gradativamente desfocado. Isso acontece enquanto ele fala sobre o surgimento de uma parede invisível que separa Mantoa do mundo exterior.

Todavia, existem momentos em que a fotografia se apresenta como contestação ao que é dito pelo narrador. Como quando protagonista acorda de uma tentativa frustrada de morrer e mesmo sendo incentivada pelo griô a se lamentar, a anciã finalmente é registrada de frente e iluminada novamente. Podemos perceber esta escolha como símbolo da quebra do isolamento da protagonista.

Mantoa, então, começa a dançar lentamente como se estivesse bailando a dois. E a câmera a acompanha oscilando em apresentá-la na escuridão e na luz. Isso se relaciona fortemente com a performance que nos transmite uma mistura de tristeza e alegria, tal qual a lembrança de alguém que não se pode mais abraçar.

O retorno dos planos que apresentam a anciã de costas e em baixa luz nos faz pensar na possibilidade de regresso do estado de espírito da personagem. Mas ainda que relutante, Mantoa sai de casa, fechando a porta e nos deixando na escuridão de seu lar. A câmera localizada na parte interna da casa fortalece a ideia de que ela abandonou o isolamento, mas não superou o luto.

Seu passeio, no entanto, tinha um intuito não menos mórbido do que o seu confinamento. Ela vai visitar o amigo coveiro que está adoentado e pede que Mokolobetsi se recupere rapidamente para poder lhe fazer uma cova. Enquanto Mantoa faz o pedido, vemos apenas a sua sombra em quadro, como um ser desmaterializado pronto para descansar em seu leito de morte.

O segundo local de parada é o cemitério, onde a anciã expressa um grande sofrimento. As imagens em planos fechados nos permitem compartilhar intimamente os sentimentos da personagem. Mas na cena seguinte, todo o clima tenso é subitamente substituído pelo semblante controlado de Mantoa conversando com o chefe do vilarejo sobre o lixo no cemitério.

Essa mudança fotográfica abrupta anuncia uma modificação também no enredo do filme. É o momento em que a personagem descobre que o vilarejo será inundado e que todos precisarão ser realocados para a construção de uma represa. Mantoa fica inconformada e vai embora resmungando. A câmera a acompanha em movimentos com pouca estabilidade, dialogando com os sentimentos da personagem que se encontra desorientada.

A notícia abate a anciã como uma espécie de novo luto. Após tentar argumentar sem sucesso com os políticos locais, Mantoa aparece novamente na penumbra do seu quarto estática e reflexiva. A construção da represa significa para ela a morte do passado, da ancestralidade e um descaso com os que ali viveram e foram enterrados.

Inconformada, a anciã encontra um novo motivo para lutar e na manhã seguinte vai até a cidade reivindicar uma conversa com o ministro. Mas o tratamento que recebe é extremamente impessoal e a escolha por fotografar a funcionária por trás, sem que vejamos o seu rosto favorece a este distanciamento.

Na volta para casa, o ônibus para e o motorista explica que terão que esperar mais um passageiro. Todos se conformam, menos Mantoa, que desce do automóvel e continua o seu caminho a pé. O registro dessa cena acontece de dentro do ônibus. Os demais passageiros continuam sentados e vemos a anciã se afastando pelo para-brisa frontal.

Mantoa em sua resiliência se recusa a aceitar sem questionar as mudanças que lhe aflige. Ela busca traçar o próprio destino. Em seu discurso o griô recita “O novo Deus saúda o velho Deus. Eu me recuso (…) isso não é uma marcha fúnebre. Eu me recuso”. E a imagem nos apresenta a anciã como movimento em meio ao conformismo alheio.

É com essa força motriz que a protagonista estimula a comunidade do seu vilarejo a lutar pelas próprias terras, através de um discurso caloroso sobre a importância de cada antepassado para a história daquele local. Quebrando o silêncio do canto desde a morte do seu filho, Mantoa inicia uma cantoria que envolve todos os seus conterrâneos.

Todos estão felizes dançando e a câmera foca nos dedinhos ritmados da anciã, assim como em seu rosto admirando a revolução que ela mesma provocou. As pessoas resgatam o seu espírito de comunidade e passam a se juntar em ações para a manutenção das terras.

Grande parte destas cenas são filmadas em planos abertos o que favorece à noção de todos como integrantes de um mesmo grupo. “Faz tempo que não via nosso vilarejo assim. Pode ser temporário, mas nos sentimos vivos e isso é ótimo”, comenta uma moradora.

Mas a comunidade ainda teria muito o que enfrentar. E a violência disfarçada pelo manto do desenvolvimento atinge mais uma vez Mantoa, que tem a sua casa incendiada. Sentada em meio aos escombros, a anciã é filmada por um plongé próximo ao zenital e fica arrodeada de diversas ovelhas que parecem a proteger.

Este quadro parece ter grande relação com a religiosidade cristã, frequentemente trabalhada no filme em uma espécie de fusão com as religiões de matriz africana. Assim como na cena em que o Padre conversa com Mantoa e Mokolobetsi sobre a origem da igreja local e é fotografado através de um espelho preso na parede, remetendo ao costume católico de possuir imagens religiosas como ornamento das casas.

Outra estratégia fotográfica superinteressante e fora do comum, que colabora para a sensação de angústia da cena ocorre quando Mantoa, angustiada por não conseguir uma cova para o descanso junto à sua família se imagina enterrando a si mesma. O registro a partir do ponto de vista da terra causa um desconforto e confusão condizente com os sentimentos da personagem.

A cena é construída com um cuidado estético belíssimo e uma concatenamento de planos que favorece a um crescente emocional fluido. O plano de transição com a lua rodeada pelas nuvens da noite sombria, revela um fio de esperança que dialoga com a atitude batalhadora da personagem que mais uma vez renasce em meio a dor para lutar pela sua comunidade e manutenção do vilarejo.

No encerramento do filme, a fotografia volta a funcionar como elemento de ligação. Em seu último ato revolucionário, Mantoa se despe do luto para ir em busca dos seus ideais. A câmera a acompanha em perfil, caminhando em meio a uma multidão, em sentido contrário. A anciã é seguida por uma garota curiosa que é filmada da mesma maneira. Esta escolha fotográfica aproxima as duas personagens, apresentando a viúva mais uma vez como uma figura de influência.

Apesar de toda a dor trabalhada no filme, é perceptível um cuidado em poupar o espectador de algumas imagens violentas. Assim, o plano final, enquadrado no rosto da criança, não apenas cumpre esta função, como somado ao discurso do griô e a expressão da garota, nos faz entender que existem várias formas de se ver um mesmo fato. Mantoa deixou para aqueles olhos infantis o seu verdadeiro legado.

TÍTULO
Isso não é um enterro, é uma ressureição (This is not a burial, it's a ressurection)
Direção
Lemohang Jeremiah Mosese
País
Lesoto/África do Sul
Ano
2019