O que significa ser homem? A heteronormatividade e a heterossexualidade são os únicos critérios para se definir a masculinidade? Aprende-se a ser homem? Direta ou indiretamente, de forma textual ou subtextual, estas são as perguntas que norteiam e assombram a narrativa e as experiências dos personagens principais do filme sul-africano Inxeba (2017), longa-metragem de estreia do diretor John Trengove que recebeu o título nacional de Os Iniciados.
Com o intuito de propor reflexões a partir destes questionamentos, especialmente num contexto africano impregnado de tradições, de respeito ao passado e suas heranças, Trengove constrói seu filme em torno de três homens com personalidades bem diferentes: Xolani, Kwanda e Vija. Membro do povo Xhosa, Xolani deixou a comunidade para morar em uma cidade próxima e trabalha em um armazém local, mas, anualmente, retorna a suas origens para servir de instrutor de algum garoto que será submetido ao rito de passagem ancestral que marca o ingresso dos jovens Xhosa na vida adulta.
É nesse contexto que ele é abordado pelo pai de Kwanda, um dos jovens iniciados, que desconfia que o filho seja homossexual e pede a Xolani que, como instrutor, seja rígido com o jovem durante sua iniciação, de modo a ajudá-lo a realmente tornar-se homem. O que ninguém da comunidade sabe é que o próprio Xolani é gay e apaixonado por Vija, um dos outros instrutores, com quem mantém relações sexuais durante os encontros anuais para realização do ritual.
Assim, é da tensão entre estes três homens que Inxeba retira muito de sua força dramática e, em última instância, trágica. Cada um desses três personagens tem seus próprios modos de vivenciar sua sexualidade e masculinidade, o que os coloca em constantes conflitos uns com os outros. Xolani é solteiro, mora e trabalha fora da comunidade e, intimamente, reconhece-se gay e aceita que nutra sentimentos de amor por outro homem, apesar de entender que não pode viver sua sexualidade publicamente naquela comunidade – e aqui vale notar que, durante sua própria iniciação no ritual Xhosa quando jovem, Xolani não teve instrutor, o que talvez o tenha levado a explorar e construir sozinho sua própria masculinidade, navegando os limites que as tradições de seu povo desejam impor. Kwanda, apesar de ser filho de um dos membros da comunidade, nasceu e foi criado pela mãe no ambiente cosmopolita de Joanesburgo, rodeado, portanto, de influências e pensamentos mais modernos, contestadores de tradições e valores impostos pelo patriarcado e carregados de um machismo e de um ideal de masculinidade tóxico – e aqui vale ressaltar que, em momento algum, deixa-se clara a sexualidade de Kwanda, apenas se o considerando gay a partir das suposições e julgamentos de outros personagens. Por fim, Vija sempre permaneceu na comunidade, casou-se com uma mulher local e tem três filhas, mas não se furta a manter relações secretas e furtivas com Xolani quando de seus encontros anuais por ocasião das novas iniciações – e aqui, vale registrar que, ao contrário de Xolani e Kwanda, Vija demonstra sempre ter dificuldade em aceitar a possibilidade de uma relação amorosa, e não apenas sexual, entre dois homens, constantemente esquivando-se, na maior parte do filme, dos beijos que Xolani lhe tenta dar.
Com características e pensamentos tão distintos, o convívio próximo desses três homens isolados por semanas a fio com os demais instrutores e iniciados no acampamento em que se desenvolvem as etapas do ritual apenas serve para, pouco a pouco, intensificar essas diferenças, gerar sentimentos de ciúme em Xolani e Vija pela relação que o outro constrói com Kwanda, e submeter Xolani, Vija e todos os demais aos posicionamentos de Kwanda que confrontam, reiteradamente, o modelo de masculinidade arcaico e tóxico que os anciãos daquela comunidade querem impor aos mais jovens a partir da perpetuação daquele ritual. Toda essa tensão entra em ebulição a partir do momento em que Kwanda percebe a relação que de fato existe entre Xolani e Vija e começa a querer fazer com que Xolani pare de se esconder e tenta mostrar ao instrutor que o que o torna menos homem é não assumir quem realmente é. Desse ponto em diante, os três personagens são inexoravelmente colocados em rota de colisão entre si e consigo mesmos, com o que realmente querem de si e uns dos outros, até um inevitável fim trágico.
Toda essa jornada de descobertas, confrontos e reflexões de seus personagens é conduzida por Trengove com um uso inspirado e preciso de alguns elementos narrativos e audiovisuais. Ao situar a grande parte de sua narrativa ao longo da realização do ritual de iniciação dos jovens, durante praticamente toda a duração do filme não se veem mulheres em cena, mas somente homens; algumas mulheres surgem apenas ao longe durante as cenas finais, quando os instrutores e iniciados recém declarados homens voltam para a comunidade e são recepcionados por suas mães, irmãs, esposas, filhas etc. Essa opção do diretor acaba por intensificar ainda mais o subtexto tóxico das práticas e ensinamentos inerentes ao ritual, que é pensado, planejado e executado por homens para ensinar jovens a se tornarem homens, ignorando e excluindo totalmente o papel, a contribuição, a opinião das mulheres na construção desta masculinidade. Mas não só nesse aspecto o ritual de iniciação se mostra violento: a forma fria com que os jovens são circuncidados no início do ritual, a submissão imposta pelos instrutores a seus iniciados, o permitido bullying que é constantemente direcionado a Kwanda por parte dos outros, o fato de os próprios iniciados terem que estar constantemente cobertos por tinta branca e usando apenas uma manta de mesma cor para se cobrirem são apenas alguns dos exemplos das violências que são constantemente perpetradas durante o ritual e que são filmadas por Trengove, em sua maioria, com uma estética que beira o documental, carregada de um pseudo naturalismo (câmera na mão, iluminação natural, participação de aparentes não atores nas cenas).
Os usos e as referências ao branco no filme, inclusive, também estão carregadas de uma simbologia de violência e opressão, talvez como reflexo do próprio histórico de colonização do continente africano e, mais especificamente, da marcada segregação racial vigente na África do Sul até fins do século XX, com o fim do Apartheid. Além de os iniciados, que ainda não são considerados homens, serem obrigados a se pintar de branco e a usar apenas um manto branco para cobrir seus corpos, sendo, assim, destacados de seus instrutores negros (invertendo-se, portanto, ainda que simbolicamente, a lógica de poder que impera no país), Vija faz uma crítica indireta ao domínio econômico branco na região, a partir de um rechaço ao fato de o dono do armazém onde Xolani trabalha ser um homem branco. Um dos principais motivos do bullying dos demais iniciados com relação a Kwanda é o fato de, apesar de negro, ele ser membro da elite de Joanesburgo e, assim, supostamente viver rodeado de gente branca e, eventualmente, ter-se contaminado com seus valores.
No que diz respeito aos personagens em si, vale apontar que a equipe de figurino do filme consegue, de forma sutil, imprimir elementos visuais que complementam e reforçam algumas das características emocionais dos personagens, especialmente no que tange à forma com que vivem e expressam ou escondem sua masculinidade e sexualidade: Xolani, o gay que, em certa medida, aceita sua própria sexualidade, mas a esconde dos demais, constantemente surge “escondido” sob um gorro que lhe cobre a cabeça; o “rebelde”, “moderno” e contestador Kwanda, que sempre confronta os anciãos, os instrutores e os outros iniciados com relação ao modelo de masculinidade que eles acreditam que seja o correto, mas que lhe parece tóxico, usa um piercing no nariz e um tênis de marca em cor azul nos pés, ainda que seja obrigado a se pintar de branco e se cobrir com um manto branco; já Vija, supostamente confiante na sensação de segurança que o fato de ser casado e ter filhas lhe dá para viver seu desejo por Xolani sem despertar suspeitas, consegue usar roupas que valorizem seus atributos físicos, o que considera a representação física de sua masculinidade, portando normalmente camisetas com as mangas dobradas ou mesmo aparecendo em cena sem camiseta.
É a partir desse conjunto de personagens, conflitos e elementos narrativos e audiovisuais que Trengove, no seu filme de estreia, tenta expor as feridas que a masculinidade tóxica pode causar nos jovens africanos, especialmente os jovens gays ou supostamente gays, que não se adequam ao modelo heteronormativo e heterossexual de masculinidade deles esperado. Nesse contexto, é interessante notar também que, da língua Xhosa, inxeba pode ser traduzido como ferida, o que levou à escolha do nome do filme para seu lançamento nos Estados Unidos, The Wound, e que remete tanto à ferida física causada nos iniciados, por conta de sua violenta circuncisão, quanto às feridas emocionais que ficam nos homens que eles se tornam, por conta do modelo de masculinidade que lhes é imposto. E, por mais que, em alguma medida, Trengove, apesar de toda a tragédia que desenvolveu antes, tente deixar alguma ponta de esperança com sua cena final, que anuncia uma possível mudança para Xolani, logo antes ele parece querer deixar claro que, naquela comunidade, como em possíveis tantas outras, que festeja a volta de seus filhos tornados homens, o ciclo de iniciação ainda não acabou e vai afetar futuramente muitos garotos, como aquele que surge em meio à multidão, em close, olhando diretamente para a câmera, como se pedisse socorro. O que significa ser homem? A heteronormatividade e a heterossexualidade são os únicos critérios para se definir a masculinidade? Aprende-se a ser homem? No universo de Inxeba, a resposta a essas perguntas nunca é fácil, e sempre causa algum tipo de ferida.