Em pleno deserto do Saara, à beira de uma estrada, Malika cuida sozinha de um minúsculo bar que atende os viajantes que porventura passam por ali ou os moradores das proximidades – muito embora o que o filme mais nos permite ver ao longe é a planície árida do deserto. No entanto, há muita vida naquele lugar, algo que Rua do Saara, 143 observa com interesse a partir do cotidiano dessa senhora que reina solitária naquele lugar (Malika significa literalmente “rainha”, alguém afirma em algum momento do filme).
Nesse lugar onde aparentemente pouca coisa acontece e a solidão é uma companheira constante da protagonista, o filme revela que há muita gente que trafega por ali e as interações são constantes – o que não necessariamente diminui a solidão de Malika. Por isso o retrato que o filme acaba construindo dela é de uma senhora muito presente, comunicativa, interessada no diálogo, o que é um prato cheio para qualquer documentarista e um foco de interesse constante para o espectador – é quase impossível não aderir a essa personagem, tal o poder de atração que o filme cria naquele microespaço: um ponto no deserto que é um mundo por si só.
O dado principal a se notar nessa construção de cena é que tudo aquilo que passamos a saber de Malika, de sua vida, memórias, passado e presente, a conta-gotas, provém das interações dela com os clientes e não necessariamente com o cineasta. Ao menos por aquilo que nos é dado a ver em cena, ele pouco fala com ela – menos do que ela fala com ele.
Apesar disso, o diretor Hassen Ferhani é uma presença muito sentida no filme. Ele parece querer interferir o menos possível no ambiente que documenta através de uma proposta de cinema direto clássico – ele mesmo nunca aparece frente à câmera. Mas o próprio filme, via montagem, não esconde que tal intuito tenha “falhado” já que em muitos momentos não só Malika se dirige a ele e olha diretamente para a câmera, como as demais pessoas interagem inevitavelmente com o cineasta – o fato do estabelecimento ser tão pequeno deve contribuir um tanto para isso. Não há, no entanto, nenhuma rigidez cênica que torne esse tipo de interação menos interessante para a narrativa do filme; ao contrário, Rua do Saara, 143 se faz por essas possibilidades de encontro e de escuta que se dão entrecruzadas pelos indivíduos que compõem aquele espaço.
É de se supor ainda que sendo o cineasta uma presença masculina, alguns dos homens que estão na cena preferem lançar perguntas ou afirmações diretamente a ele e não à mulher, apesar do diretor ser um “estranho” naquele lugar; tal impressão precisa ser melhor pensada, mas não descartada aqui – logo no início do filme um cliente diz a Malika achar estranho um bar ser comandando por uma mulher, mais um dado de estranheza no universo árabe do Saara argelino.
De qualquer forma, a presença do diretor (e todo seu aparato de cinematografia) acaba se tornando um ponto de apoio (e de existência do próprio filme, claro), mas não é a partir de sua interação com Malika que a obra se abre a outros domínios, e sim nas conversas que se querem prosaicas e casuais entre ela e os clientes que param no estabelecimento da simpática senhora e com ela trava prosas e diálogos saborosos no decorrer do filme.
Rua do Saara, 143 revela-se, portanto, um filme de encontros, mesmo que fugidios, dessa mulher com gente diversa, falando de coisas sérias, fazendo brincadeiras entre velhos amigos, confidenciando segredos pessoais. Aliás, nesse quesito, é muito incrível ver como Malika, pouco a pouco, revela intimidades que para uma senhora da sua idade nem parecem tão inconfidenciáveis assim, como as conversas ao telefone em que ela dá a entender que foi expulsa pela família em alguma ocasião anterior e não tem mais relações com essas pessoas, nem deseja reatá-las; ou ainda, momento mais duro do filme, quando ela revela que teve uma filha assassinada no passado. São instantes que o filme capta com aparente naturalidade, sem esperar tais confidências, o que demonstra ainda mais a sua força de exploração dos dramas humanos, filmando apenas aquele ambiente pacato e perdido no meio do deserto.
Mais do que apenas explorar dados substancias dos personagens, há momentos muito incríveis de espelhamento, como no caso da conversa com a motociclista polonesa. Ela fala inglês e arranha num francês que Malika fala bem, portanto a comunicação não é das melhores. Mas quando a viajante lhe mostra uma foto de sua mãe no celular, Malika se acha parecida a ela; quando a moça fala que não tem filhos nem marido, Malika afirma que ela também não; no final de contas, aquelas duas estranhas aproximam-se pelas semelhanças.
Além de tudo isso, Ferhani tem um olhar muito sagaz para a composição dos espaços, para como filma aquele ambiente sempre com muito interesse. Os quadros do filme recortam as porta e janelas como a refletir o que vê aquela senhora quando olha para fora – sagazmente, a câmera do filme está sempre colocada em uma posição muito baixa, assumindo a altura do olhar de Malika quando está sentada dentro da cafeteria. Seu olhar é para a vastidão do espaço, para o que o futuro reserva (e ela está preocupada com um novo bar e restaurante que está sendo construído ali muito perto do seu), mas a visão que o filme melhor nos apresenta é aquela que está no interior de personagem tão fascinante.