“The Trap” (tradução: “A armadilha”) é um curta-metragem egípcio, dirigido por Nada Riyadh, que mostra um casal de namorados: Aya e Islam. Desde o início, a dinâmica de relacionamento é mostrada com sutileza: Aya caminha atrás de Islam. Ao fazerem compras para onde estão hospedados, Aya é quem discretamente dá o dinheiro escondido na mão do parceiro, para que ele, sim, possa pagar pelos produtos. A postura desconfortável de Aya e o olhar vertical de Islam salientam ainda mais essa dinâmica. Há uma relação de poder abusiva.
Aya utiliza de certa naturalidade ao andar atrás de seu namorado para trocar mensagens com sua irmã. Ela planeja terminar seu relacionamento e a irmã está preocupada com ela. O único momento em que ela caminha na frente dele é quando ele pega um colar de flores para ela. Eles caminham lado a lado, quando ele faz carícias nela enquanto outras pessoas caminham na mesma rua. Ela pede discrição. Ele bate as compras em um poste e se apressa sozinho. A mise en scène aqui revela o ciclo do abuso: um gesto de afeto, uma invasão de limites, uma explosão de violência. Abuso psicológico se dá nos detalhes, e esse filme nos mostra isso com extrema sutileza sem diminuir a tensão. Cria-se um suspense de sutilezas.
O filme todo se expressa sob o ponto de vista dessa mulher: os silêncios, cada som, cada respiração, tudo é cuidadosamente colocado para compor os sentimentos de Aya. O externo reflete o interno da personagem. A câmera, que foca unicamente nela após Islam fazer uma “microagressão” (entre aspas pois de micro não há nada), acompanhando seu desespero escrevendo mensagens, em um plano fechado, intercalando olhares entre o celular e seu parceiro, é desestabilizada por cães latindo. Ela cai. Vemos fumaça, Islam caminha por ela. Não há nada concreto acontecendo: é apenas um latido e itens sendo queimados no chão. Vivemos, junto de Aya, a tensão, o medo e a confusão de saber que está num relacionamento ruim, o receio da próxima “microagressão”, a confusão vinda pelas migalhas de afeto e o desespero de não conseguir sair correndo.
Após o fim da baldeação, chegamos com este casal a Al-Agamy, uma cidade à beira do mar localizada fora de Alexandria, no Egito. De acordo com a diretora, em sua entrevista para a Semana da Crítica no Festival de Cannes em 2019 (ver vídeo no final deste texto), Al-Agamy costumava ser um grande destino turístico para pessoas de classe média-alta, mas que hoje em dia havia sido abandonado, e a escolha de ter o filme se passando nessa cidade era uma alegoria da decadência da sociedade. Isso me remete aos filmes de Jim Jarmusch ao utilizar uma locação real e as questões que seu contexto levanta como uma camada própria extra à densidade do filme.
Enfim, entramos na casa onde estão hospedados, uma casa pequena com varanda e vista para o mar – mas assim que fecham a porta, não os escutamos mais. O sufocamento de Aya se revela também nesse som que “isola” a vida exterior. A casa está infestada de ratos e baratas, possui comida espalhada e muitos móveis em tão pouco espaço. A sensação de entulho é grande. Aya está em outra cidade, entre entulhos, com um parceiro que diz que a ama, mas não age como tal.
As cenas do filme são longas, sem muitos cortes entre as interações dos personagens, fazendo com que nós espectadores sintamos todo o desconforto de Aya. A cena onde eles cozinham traz isso à tona. De um lado da cozinha extremamente estreita, ela corta os legumes. Islam pega o celular de Aya, descobre que ela conversa com outra pessoa sobre os planos de terminar com ele, e entra na cozinha também. Com o celular, coloca a música “Alf leila wa leila” (tradução: Mil e uma noites), canção romântica muito conhecida composta por Baligh Hamdi, escrita pelo poeta Morsi Jamil Aziz e interpretada por Umm Kulthum [1].
Uma migalha de afeto, seguida de Islam tomando a faca grosseiramente das mãos de Aya. Com essa música melódica de fundo, Islam corta os legumes de um lado, e Aya cuida do fogão do outro. Próximos, porém de costas um para o outro. Islam lentamente (mas nada gentilmente) força uma interação afetuosa, tenta beijá-la, abraçá-la, faz cafuné, diz que a ama. E aqui Aya ganha mais voz, conta a história de um término de um relacionamento extremamente violento que, com o tempo, as pessoas ficaram bem e bem melhores que antes. Islam sai do cômodo, retorna, chama-a de vadia e sai novamente. A cena possui cerca de 4 minutos de duração (1/5 do filme), é incômoda e não dá ao espectador um respiro sequer.
Após tentar envenenar Islam, ele decide deixá-la ir. Ela não hesita, pega sua mala, liga para sua irmã e pede para esperá-la na estação, diz a ela que tudo está terminado. Na porta da casa, prestes a ir embora, percebe que esqueceu seu celular para trás, entra rapidamente para pegá-lo, e não consegue sair da casa mais. É contida por Islam, que a beija, fala que a ama, pede para ela não deixá-lo, e força uma relação sexual. Estupra Aya no chão da sala. A reação de Aya é de dissociação, ela não age, não expressa, apenas olha para o nada. A ilusão da liberdade em um relacionamento abusivo, evidenciando a escalada das agressões. Aqui, para reforçar ainda mais a sensação de prisão, a câmera foca no estupro, depois parte do olhar perdido de Aya e se afasta do cômodo, da porta, alcança a varanda e mostra o mar.
Esse é o fim do filme. A sensação de impotência que essa cena traz me incomoda além do suspense construído pelo filme: ao invés de instigar o espectador que apenas assiste à violência, o filme simplesmente se afasta, como se dissesse “certo, observamos o ciclo da violência chegar em um ápice, vamos sair de fininho silenciosamente e contemplar o quão decadente as relações humanas estão e o quão evidente é a violência de gênero”. A estética do filme é conivente ao estupro ao possibilitar uma forma de “escapar” da violência, assim como nós no dia-a-dia evitamos conversar abertamente sobre esses temas, como nós comumente evitamos dar suporte a um casal que claramente está passando por uma situação similar. Como se nós, espectadores, não tivéssemos nada a ver com isso. Aqui, o filme peca em certa covardia de nos confrontar ao nos permitir uma “saída fácil” daquela cena. Precisamos de filmes que nos questionem desse lugar de cúmplices das violências cotidianas, e sabemos que o cinema possui ferramentas não-verbais que possibilitam esse questionamento [2].
Com esse final, o filme também me faz pensar na passividade de personagens do gênero feminino, tão frequente no cinema. Inúmeras mulheres se sentem em uma armadilha assim como Aya, impossibilitadas de sair, mas o filme todo, que construía uma personagem com uma rede de apoio, que buscava formas de sair dessa situação, em cada cena ganhando mais coragem, esquivando cada vez mais de Islam, no final foi violentada… e ponto. Por um lado, me traz uma quebra dessa construção, um corte de toda a evolução da personagem, o que não só estranha como também decepciona. Poderia ter terminado de forma que ela continuasse presa no relacionamento sem emergir a passividade. Por outro lado, o fato de Aya não conseguir agir no final mostra o conflito interno de mulheres em situações similares que possuem sentimentos por seus parceiros, e mesmo sabendo das violências não conseguem reagir. Mostra que o problema não é simples, não é apenas sair fisicamente.
São questões ricas ao debate de representações de mulheres no cinema. Há vícios na forma de mostrar mulheres em situação de violência? Como os elementos estéticos cinematográficos corroboram com a forma que vemos essas violências na vida real? The Trap fomenta essas discussões carregando essas problemáticas em si e enquanto é extremamente bem construído em outros aspectos.
[1] Umm Kulthum é uma das maiores cantoras e artistas egípcias de todos os tempos, um ícone atemporal respeitado até os dias de hoje. [2] Agradeço à Carol Almeida por levantar essas questões durante a curadoria da 2ª Mostra de Cinema Árabe Feminino.