Em 2017, o fotojornalista e ativista político Boniface Mwangi decide entrar na disputa política para concorrer a uma vaga no Parlamento nacional pela região de Starehe, no Quênia. Softie é o retrato dessa luta, menos como obsessão de Mwangi pelo cargo representativo e mais como forma de enfrentamento e provocação, embebido por uma grande vontade de mostrar que é possível fazer política de outra forma que não aquela historicamente conhecida baseada num populismo frio, comprável, com publicidade voraz e ainda calcado na intimidação dos adversários. Ao povo, são dadas promessas vãs e garantias de suborno, já enraizadas na sua cultura.
Trata-se de um sistema político complicadíssimo – como o é em grande parte nos países africanos, herança nefasta no colonialismo –, algo que o cineasta Sam Soko esforça-se para contextualizar minimamente, na medida em que Mwangi adentra nesse labirinto de coisas nebulosas, buscando saídas honestas e possíveis dentro de um confronto político que já começa desigual.
Este é o primeiro longa-metragem do realizador Sam Soko, também queniano, uma estreia de presença, dada a complexidade do tema e a forma como ele orquestra, com um ritmo um tanto acelerado, tantos detalhes e nuances, inclusive para um público não africano. Tem ao lado ainda um personagem que se equilibra entre a veia política e a vida familiar, fazendo de Softie um filme de dupla camada: entre o macrocosmo da dimensão público-política e histórica de um país marcado pela opressão colonial, e do outro lado a relação íntima que a família de Mwangi estabelece com a câmera do filme.
A esposa dele, Njeri Mwangi, é figura central aqui a representar a ponte entre esses dois mundos, não necessariamente conflitantes. Ela é também uma ativista política que sempre apoiou e acompanhou o marido nas suas manifestações (já foram presos juntos, como ele mesmo menciona); mas é também a mãe dos três filhos que eles têm e cumpre a função de sempre convocá-lo a pensar na família, interagir com os filhos e, acima de tudo, não deixar que Mwangi se consuma por completo nas veredas do empenho político. Numa conversa que o casal tem no carro, ele afirma que colocaria o país acima da família numa escala de importância, argumentando que cuidando do país ele estaria, consequentemente, cuidando da família e garantindo um futuro melhor para os filhos, ideia com qual a esposa claramente não concorda.
É um desentendimento conceitual que revela como Mwangi enxerga sua postura política e sua função comunitária no país, mesmo que de forma utópica dentro do contexto sócio-histórico do Quênia. Essas e outras divergências entre os dois serão expostas no decorrer do filme, acentuando as perdas e sacrifícios que precisam ser feitos para uma empreitada como essa que Mwangi se dispôs a enfrentar, mais uma vez equilibrando o macro e o micro, o social e o íntimo.
Ainda assim, é interessante perceber o quanto o filme adere ao personagem, toma seu partido e o quanto o diretor compra de fato a luta e as inquietações que levam Mwangi a se candidatar naquele momento, algo a se refletir no intimismo das imagens captadas pelo longa (com acesso aos pormenores das discussões internas e conversas íntimas); tudo isso é ajudado pela própria estrutura de uma campanha eleitoral muito artesanal e solidária, com um aparato simples de mobilização da população, apesar de Mwangi possuir um escritório, uma chefe de campanha e funcionários que trabalham para viabilizar a sua eleição – ele conseguiu financiar a empreitada completamente através de doações voluntárias da população, ainda que isso nem se compare ao arsenal financeiro que seus concorrentes possuem – como o bizarro cantor popular Jaguar e seu hit de sucesso.
Com isso, em alguns momentos, o filme não consegue escapar de certa condescendência com o protagonista e também com sua esposa, no sentido de acentuar sua força moral e destemor em seguir fazendo o que eles acreditam, por vezes de modo muito expositivo. A agilidade narrativa do longa, no entanto, não permite que isso extravase na tela como exploração melodramática dos desgastes e empenhos dos personagens, até porque as próprias imagens e suas atitudes já falam por si mesmas.
Isso se mostra com clareza no momento em que o filme faz um flashback para o ano de 2007, período de eleições conturbadas no Quênia em que acusações de fraude provocaram uma onda de protestos e violência encabeçada pelo partido perdedor. Naquela época, Mwangi fotografou oficialmente a onda de violência e produziu imagens cruas e cruéis, banhadas em sangue e dor, dos embates nas ruas e dos conflitos entre as muitas tribos distintas e rivalizadas que compõem a população queniana (outra herança perversa do colonialismo britânico que dividiu a população do país em castas distintas, conferindo a elas “características” específicas, até hoje reproduzidas no imaginário social). Em 2008, ele chegou a fazer uma exposição com tais fotografias a fim de denunciar a situação, uma vez que à época muitos veículos se recusaram a publicizar os registros que ele produziu.
Com isso, ao mesmo tempo em que o longa ajuda a contextualizar o cenário político que se desenha para as novas eleições de 2017, reverberando os mesmos sujeitos políticos ou os seus descendentes e sucessores diretos na corrida política do país, Soko também explicita de onde vem a gana de Mwangi em seguir aquela jornada, sua inquietação política e o desejo de fazer algo pelo seu país através das vias legais do sistema representativo que, com suas imperfeições e vícios, ainda é visto por ele como uma forma de construir uma sociedade mais igualitária.
De qualquer forma, a escolha que o filme faz parcialmente é o de estar ao lado do embate justo e denunciatório das mazelas e dos meandros sujos do sistema político queniano que Mwangi acusa e busca contornar. Não é à toa que o filme recebe o apelido que ele tinha na infância (“softie” pode ser traduzido como “molenga” ou “fracote”, aspecto dele quando mais jovem), mas que se reconfigura nas imagens do filme a partir do homem combativo e corajoso que ele demonstra ser, mas não menos risonho e brincalhão, pai e marido amoroso, quando precisa. “Eu não suporto políticos, não suporto a hipocrisia”, afirma Mwangi em determinado momento. Mas é nas trincheiras políticas – e com a potência das imagens – que ele busca ensaiar a sua pequena revolução.