Perfil: Sarah Maldoror (França/Angola)

por Leticia Santinon

Sarah Maldoror e seu cinema anticolonial

“A descolonização nunca passa despercebida porque assenta no ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores esmagados pela inessencialidade em atores privilegiados, apanhados de modo quase grandioso pela roda viva da História.”
Frantz Fanon (1961, p.40)

Nos últimos anos, a internet possibilitou um aumento de visibilidade aos cinemas não hegemônicos, e com isso tornou mais acessível o contato com cinematografias antes pouco conhecidas. Tal possibilidade só foi possível aliada a trabalhos de pesquisadoras e pesquisadores que há muito tempo estão se debruçando em estudos, análises e difusão desses cinemas. Tratando especialmente dos cinemas africanos no Brasil, é legítimo destacar duas importantes iniciativas, a Mostra de Cinemas Africanos e o Fórum Itinerante do Cinema Negro (Ficine). Hoje, tais ações se consolidaram em espaços de exibições e debates de e sobre os cinemas africanos, e graças a elas, o público brasileiro, especializado ou não, tem contato com filmes, realizadores e histórias que antes eram desconhecidas em nosso país. Foi através destes espaços (entre outros que surgiram posteriormente) que pude ter contato com o cinema de Sarah Maldoror, realizadora pioneira dos cinemas africanos.

Sarah nasceu na França em 1929, filha de mãe francesa e pai antilhano de Guadalupe, e é a primeira realizadora negra a filmar no continente africano. Embora não tenha nascido em África, afirmava o seu interesse em contar a história africana, que por muito tempo foi contada pelos outros:

Eu acho que somos nós que devemos defender nossa própria história, para torná-la conhecida – com todas as nossas qualidades e defeitos, nossas esperanças e desespero. (Maldoror, 1997) [1]

Autora de mais de 40 obras, sua carreira reuniu filmes com uma profunda força política, poética, ética e estética. Um cinema anticolonial, mas, sobretudo, poético. Tais características podem ser identificadas na sua trajetória, em que diversos encontros e experiências a atravessaram, incluindo seu sobrenome. Maldoror, foi adotado a partir da obra Os Cantos de Maldoror (1869), do poeta francês surrealista Conde de Lautréamont (1846-1870). 

Sua primeira experiência rumo a uma carreira artística foi na Paris de 1956, onde em companhia de outros artistas oriundos da África e do Caribe, Sarah fundou o grupo de teatro “Les Griots”. Poucos anos depois, no início da década de 1960, Sarah vai estudar cinema em Moscou com uma bolsa concedida para estudantes africanos. Admiradora do cinema soviético, e incentivada por Chris Marker (1921-2012), Sarah e Ousmane Sembène (1923-2007) são os primeiros cineastas africanos formados pelo VGIK (Instituto Nacional de Cinematografia da União Soviética). Ambos foram orientados por Mark Donskoy  (1901-1981). Em uma entrevista concedida para a pesquisadora Raquel Scheffer, publicada em 2015, Sarah afirma que ficou impressionada quando Donskoy abordou o racismo em uma aula – ela nunca imaginaria falar sobre o tema na União Soviética, em uma escola na Rússia, um país que pensamos ser majoritariamente branco.

Após essa formação, Sarah parte para o continente africano, onde tem a oportunidade de participar como assistente do filme A Batalha de Argel (La battaglia di Algeri, 1966, Argélia e Itália), de Gillo Pontecorvo (1919-2006). Sarah afirma que era mais uma ajudante do que assistente e que essa experiência foi importante para sua carreira cinematográfica, uma vez que a Argélia lhe possibilitou realizar seus dois primeiros filmes – Monangambé (1969) e Os Fuzis para Banta (1971) – ainda que este último tenha sido confiscado pelo próprio governo argelino, em uma ocasião que abordaremos adiante. Sarah foi companheira de Mario Pinto de Andrade (1928-1990), um dos fundadores do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), e essa relação possibilitou que a realizadora tivesse um contato mais profundo com as lutas pela libertação das colônias portuguesas em África, fato histórico que estará presente na sua obra cinematográfica. 

Em seus três primeiros filmes, todos ficcionais, Sarah ressalta o papel da mulher na revolução, nas lutas anticoloniais. São sobre essas obras que vamos comentar um pouco neste texto. Monangambé (1969) e Sambizanga (1972) tratam sobre a luta de independência de Angola (1961-1974). Ambos os filmes são inspirados em obras literárias de Luandino Vieira (1935), escritor angolano e integrante do MPLA. Monangambé é inspirado pelo conto O Fato Completo de Lucas Matesso (1961); e Sambizanga foi inspirado  no romance A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961) [2]. Os títulos dos filmes também se relacionam diretamente com a cultura angolana: “Monangambé” é também o nome de uma canção de Ruy Mingas (1939), cantor angolano, e que também remete a uma expressão que significa “morte branca”, usada em Angola para se referir à polícia colonial; já “Sambizanga” é o nome de um bairro em Luanda, onde viviam muitos combatentes, que lutaram pela independência do país.

Nas duas obras, Sarah destaca as mulheres nas narrativas, sendo imprescindíveis, principalmente em Sambizanga, em que a protagonista Maria, interpretada por Elisa Andrade, conduz o espectador pela busca de seu companheiro Domingos, interpretado por Domingos Oliveira, sequestrado e preso pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado Português). Em Monangambé, a narrativa se desenvolve a partir da visita de uma mulher ao seu companheiro preso pela PIDE, assim como em Sambizanga. A foto de António de Oliveira Salazar (1889-1970) [3] na sala do diretor da prisão, além de indicar o período salazarista, pode ser compreendida como uma crítica direta ao regime colonial português. Nesta cena, o guarda está relatando ao diretor da prisão que ouviu a mulher, ao visitar o prisioneiro, sussurrar em seu ouvido que lhe trouxe o “completo” [4], demonstrando a ignorância do colonizador e a incompreensão existente em situações coloniais. 

Um outro fato curioso que liga os filmes Monangambé e Sambizanga é a protagonista Elisa Andrade, que atua em ambos os filmes. Elisa é de Cabo Verde e foi militante do PAIGCC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Assim como outros atores não profissionais que atuaram nos filmes de Sarah, principalmente neste início de sua carreira, Elisa estava ligada pela luta por liberdade e autodeterminação dos povos africanos. 

Os Fuzis para Banta foi o segundo filme de Sarah Maldoror, gravado em 1971 na Guiné (ainda colônia portuguesa), que, assim como Angola, vivia o processo de luta pela independência. O desejo de Sarah era apresentar no filme o papel indispensável das mulheres na revolução. As filmagens foram financiadas pela Argélia, mas Sarah se desentende com autoridades do exército argelino, e logo após a finalização das gravações os rolos são confiscados e, acredita-se, destruídos. O filme jamais pode ser visto, infelizmente. Em 2011, o cineasta Mathieu Kleyebe Abonnenc (1977), nascido na Guiana Francesa e residente na França, lança o curta-metragem Prefácio a Fuzis para Banta, com fotografias realizadas durante as filmagens em 1971, localizadas décadas depois. O filme é uma homenagem à Sarah e uma tentativa de recriar essa história que foi privada do público. Um belo registro que nos dá uma ideia de um filme que nunca foi montado, que não existiu. 

O pioneirismo de Sarah se apresenta não somente por ser a primeira cineasta negra a filmar em continente africano, mas igualmente por ser a primeira a representar, na ficção, a luta pela libertação de uma colônia portuguesa. Cabe evidenciar que de todos os regimes coloniais presentes em África, os que estavam sob o jugo português – Angola, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné Bissau e Moçambique – foram os últimos a conquistar suas independências, ainda ​que o regime colonialista do Apartheid​,​ ​na África do Sul, tenha perdurado​​ até 1994. Embora as lutas por independência nas colônias portuguesas tenham se iniciado na década de 1960, como nos demais regimes coloniais presentes em África, as independências conquistadas somente após a queda do salazarismo, arrastou esses povos por longos anos de sofrimentos com as guerras civis. 

A alcunha de cinema anticolonial em Sarah está expressa para além de seus filmes que abordam diretamente as lutas anticoloniais em África. Sua amizade com Aimé Césaire (Martinica, 1913-2008), intelectual que teorizou sobre o colonialismo, foi fonte de inspiração para o seu cinema. A própria Sarah se referia a Césaire como um grande homem entre os grandes homens, a emanação da poesia pura. A cineasta realizou quatro filmes sobre Césairé – E os cães calam-se (Et les chiens se taisaient, 1974),  Aimé Césaire – Um homem, uma terra (Aimé Césaire – un homme, une terre, 1977), Aimé Césaire – A máscara das palavras (Aimé Césaire – le masque des mots, 1987) e Eia pour Césaire (2009). Sarah expressou seu amor e admiração por Césaire em seus filmes, em entrevistas e debates que participou. 

Assim como Césaire, outro intelectual antilhano, Frantz Fanon (Martinica, 1925-1961), foi uma importante presença e constância no cinema de Sarah Maldoror. Os condenados da terra, obra literária escrita por Fanon em 1961, ano também de seu falecimento, foi preponderante para esse primeiro período de realização de Sarah, em que seus filmes abordavam diretamente as lutas anticoloniais. O próprio Fanon foi influenciado por Césaire, sendo ambos grandes inspirações para a realizadora. Na entrevista para Raquel Schefer, a realizadora comenta sobre um projeto de filme sobre o martinicano. Lamentavelmente, Sarah nos deixou em abril de 2020, vítima da Covid-19, e provavelmente por falta de investimento, o filme não foi realizado. Seria magnífico assistir um filme sobre Fanon realizado por Sarah. 

O falecimento de Sarah acelerou as ações de restauração de sua obra. Em 2021, Sambizanga foi restaurado e em breve teremos a oportunidade de assistir a cópia na sua melhor qualidade. A informação foi divulgada por Annouchka de Andrade, filha de Sarah, em um debate online [5] realizado em abril do último ano, após um ano do falecimento da realizadora. 

O cinema de Sarah Maldoror merece ser celebrado, debatido e analisado. Embora seja autora de uma vasta obra cinematográfica, a realizadora teve sua difusão limitada, ainda mais quando consideramos um país como o Brasil, que possui uma circulação restrita dos cinemas africanos (e que felizmente pode contar com iniciativas como as citadas no início deste texto). Sarah realizou um cinema anticolonial atravessado por poesia, presente nas cenas primorosamente executadas e nas músicas que embalam suas histórias, movida pela liberdade e pela beleza. 

[1] Entrevista de Sarah Maldoror realizada por Beti Ellerson em 1997 durante o O Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO). https://www.africanwomenincinema.org/AFWC/Maldoror.html (acessado em 11.03.2022)
[2] O texto foi escrito em 1961, período em que o autor esteve na prisão, porém sua primeira publicação foi somente em 1974.
[3] Foi um ditador de Portugal entre 1933 e 1968, esse período é conhecido historicamente como salazarismo, que perdurou mesmo depois da sua morte, até o 25 de abril de 1974 (Revolução dos Cravos).
[4] Completo é um prato típico de Angola, no filme o guarda entende que o termo pode ser um código entre a mulher e o prisioneiro.
[5] Debate "Cinema, negritude e poesia: Uma homenagem a Sarah Maldoror" realizado em 14.04.2021 como parte da programação da Semana do Cinema Negro de Belo Horizonte. https://www.youtube.com/watch?v=OeEC6Y4F7Og&t=1587s (acessado em 10.03.2022)

REFERÊNCIAS


CARDOSO, Pedro. Em nome da moral fazem-se guerras. Buala, 2008. Disponível em <https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/em-nome-da-moral-fazem-se-guerras-entrevista-a-sarah-maldoror>. Acesso em: 02 de março de 2022.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Livraria Letra Livre, 2021.

HOLANDA, Karla (Org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro. Numa Editora, 2019. 

PIÇARRA, Maria do Carmo. Os cantos de Maldoror: Cinema de libertação da realizadora  romancista. Revista Mulemba UFRJ v.9, n.17 p.14-29. Rio de Janeiro, RJ, 2017. 

PIÇARRA, Maria; ANTÓNIO, Jorge (Orgs.). Angola: o nascimento de uma nação. Vol. III.  Lisboa: Guerra e Paz, 2015.

PRICE, Yasmina. Woman With a Weapon-Camera: On the work of Sarah Maldoror. The New Inquiry, 2020. Disponível em <https://thenewinquiry.com/woman-with-a-weapon-camera/>. Acesso em: 25 de fevereiro de 2022.

SILVA, Alexsandro de Sousa e. Sarah Maldoror: uma cineasta na diáspora. Revista USP, n. 123 p. 69-84. São Paulo, SP, 2019.