Filme Pirinha (2024), de Natasha Craveiro
por Samara Castro
Dirigida por Natasha Craveiro, Pirinha, um filme com sequência de planos detalhes, tenta, a partir deste enquadramento, provocar sentimento de aproximação e amorosidade nos espectadores. Com toques sutis de afeição, a narrativa se desenrola de uma relação afetiva entre uma avó e sua neta, uma menina entrando na fase da adolescência. Avó que carrega o símbolo do matriarcado, gesta e organiza a casa, tecendo com muito apego a sua neta, especialmente quando esta adoece. As folhas de eucalipto são vistas como alívio para a alma e usadas em rituais para sanar diversas situações.
Pirinha carrega detalhes, emoções de uma infância livre, conduzida entre regras e rezas; os rituais se tonam o movimento chave para a cura. Marcada por diálogos pontuais, a trama acontece na cidade de Cabo Verde, em que as cenas da avó em casa com sua neta se entrelaçam com a narrativa da jovem já na fase adolescente, relatando sobre a infância e seus traumas. De uma corporeidade única, Pirinha surpreende quando em uma cena a jovem adolescente indica o medo por um bicho da floresta – uma semelhança com o Curupira aqui do Brasil. Ela respira e encara de frente a fera, pondo um fim no medo/desconforto que a perseguia desde a infância. Pirinha sensibiliza pela superação indicando como a infância é um processo fundamental para o desenvolvimento maduro de uma psique.
Regada pelos cuidados da avó, o contato transitório entre a menina quando criança e adolescente é marcado por cenas de reencontro, como se uma precisasse encontrar a outra. Neste esbarrar, elas vivem ali, juntas, a superação de traumas, como um bicho em metamorfose precisando se desprender da casca para dar vida ao novo, à nova pessoa que está por vir. Há neste momento um aspecto de consciência de cura da transição do passado para a existência do presente, que só se encontra da forma que é porque algo veio primeiro. No decorrer da narrativa é interessante ver a jovem se encontrar em fases diferentes, sobretudo quando em um deste momento ela adentra um caminho inseguro. Seu corpo de adolescente entra em transe, e uma dança de inquietude toma seu corpo no meio da mata induzindo uma possível violência sexual. As cenas do afeto da avó retomam, e as folhas de eucalipto vão ao fogo para o preparo do banho, depois conduzida a uma reza vestida de branco.
A produção de Pirinha apresenta semelhanças entre o território de Cabo Verde e Brasil, onde o cotidiano da trama pode ser facilmente confundido com as cidades da Chapada Diamantina, na Bahia. Além das semelhanças nas vestimentas, das camisolas de vó e da gerência da casa por uma matriarca, o conteúdo do filme se aproxima da realidade brasileira em que muitos corpos precisam retomar ao passado para diluir traumas e destravar a alma. A trama sensibiliza pela movência de um corpo marcado por memórias e, mesmo que em territórios diferentes, compartilham do mesmo processo de sobrevivência. Brasil e Cabo Verde se comunicam pelo lugar que a memória ocupa no cotidiano, demonstrando que o corpo nada esquece, apenas transmuta cicatrizes em outras dimensões. Em Pirinha, a corporeidade da jovem adolescente é marcada pelas inquietudes dos traumas infantis e, mesmo tendo o corpo regrado e rezado pela avó, ninguém está ileso de sofrimentos.
Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2024 da Mostra de Cinemas Africanos em Salvador, ministrado pelo crítico de cinema Rafael Carvalho.