Tela preta, som de filme de ação, algumas imagens borradas: ninjas, luta, Bruce Lee. Crianças assistem a projeção sem tirar os olhos da tela. Estão em um hospital, uma tela iluminada, olhos no escuro, heróis lutando em frente a uma câmera bailarina, e lá está o cinema.
O pátio de uma casa, à noite. Um equipamento de luz é ligado. Ilumina-se um homem que lança um lenço em volta da cabeça e então tudo se transforma. Luz, câmera, ação: O Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, é reencenado em texto e movimento. Mas não há câmeras. Apenas olhos, mãos e um grupo de amigos: cinema.
As duas cenas descritas são aquelas iniciais de Supa Modo (2018), de Likarion Wainaina, filme do Quênia com coprodução alemã, e Falando sobre Árvores (2019), filme sudanês de Suhaib Gasmelbari. Apesar de produções muito distintas, ambos estabelecem relações entre imaginário e política, cinema e comunidade. O cinema, seja a sua realização, seja a exibição, ganha significado por sua dimensão coletiva, que, como uma matéria invisível, opera nos corpos, nos espíritos e nas relações, instaurando novas realidades compartilhadas. É esta matéria invisível emerge em Supa Modo e Falando sobre Árvores, que têm o cinema e a comunidade como protagonistas.
Jo é uma menina com cerca de dez anos de idade. Ela possui uma doença terminal e muitos sonhos, alimentados pelos filmes de ação que assiste em casa e no hospital onde faz seu tratamento. Quando Jo sai do hospital para passar seus últimos dias em casa, o filme começa. Ainda nos corredores do hospital, logo após a exibição de um filme de artes marciais, o diálogo entre duas crianças: Bruce Lee é um herói. Mas heróis não morrem e Bruce Lee morre. Fica pela metade o pensamento. Bruce Lee não é herói ou Bruce Lee não morre?
Jo quer ser uma heroína. Mas Jo vai morrer. Supa Modo é o caminho que faz de Jo uma super heroína imortal. Sua mãe, que trabalha como parteira na comunidade, precisa lidar com a dimensão oposta da vida: acompanhar a filha em direção ao fim. É a irmã adolescente que percebe no imaginário de Jo um meio para conectá-la com os dias. Por meio de travellings, a câmera viajante, imagens recortadas por janelas e portas, o enquadramento do espetáculo, e emolduradas por cortinas esvoaçantes, Wainaina vai aos poucos misturando realidade e fantasia, imaginação e comunidade, vida, morte e cinema. Ao final, o cinema transforma Jo na super heroína que ela quer ser, não apenas pela sua imagem gravada na tela ou pelos efeitos especiais que a fazem voar – “Minha missão é salvar a todos para que eu possa finalmente voar”, diz a personagem em um momento -, mas por criar uma realidade que se perpetua no tecido imaginário daquela comunidade.
Em Falando sobre Árvores, a dimensão política dessa invenção de imaginários sociais é mais evidente. Suleiman Ibrahim, Ibrahim Shaddad, Altayeb Mahdi são cineastas integrantes do Sudanese Film Group. No final dos anos 1990, o coletivo que publicou a Revista Cinema no Sudão fundou o grupo para atuar em várias áreas do cinema, da produção, exibição e ensino. O grupo teve as suas atividades encerradas no mesmo ano por motivos políticos e, em 2005, conseguiu se registrar novamente. No filme de Gasmelbari, nossos três heróis, já imortais, em meio a memórias e conversas, tentam reativar o cinema do antigo grupo e realizar uma exibição para a comunidade.
“This is my life. There’s nothing else”. A frase de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses dá o tom da trajetória dos cineastas. Vidas atravessadas pelo cinema que vão se revelando por meio de conversas telefônicas, baús abertos e trechos de filmes dos cineastas. O ritmo do filme acompanha o movimento dos personagens: noturno, lento, sábio, elegante e intenso. O ritmo de quem sabe o que fez, o que faz e o que ainda tem para fazer. Nas cenas diurnas, eles limpam o cinema que querem reabrir. Uma grande arena a céu aberto, em tons terrosos. O sino da igreja toca e reverbera no cinema: é um templo. Poroso a comunidade que o rodeia. Ao mesmo tempo, assistimos de forma assustadoramente material a interferência da religião naquele contexto. A materialidade do cinema: a poeira, o cimento, os corpos que o erguem. Ibrahim, Shaddad, Mahdi ficam pequenos diante da Grande Tela, ao mesmo tempo em que suas histórias têm o tamanho da história do cinema.
Uma árvore é plantada. Vida longa ao cinema sudanês. As três sementes que preparam as exibições de filmes para as novas gerações têm consciência do ciclo da vida e querem prolongar a sua estadia nesse mundo. O cinema atravessa as vidas, mas sobretudo atravessa a comunidade. Cria imagem, imaginário e história. Por isso a proibição. Já no final, o Ministério da Cultura não libera a exibição do filme no cinema reformado. Mas enquanto Charles Chaplin viver seus dramas, projetado em alguma parede, para uma plateia de crianças, eles continuarão a falar sobre árvores.
“No cinema sudanês o herói morre”, diz Ibrahim em entrevista à rádio local.. E continua: “o cinema morreu, mas não foi por motivos naturais. Foi um traidor que o matou”. Mas aprendemos com Supa Modo, que heróis não morrem. Quando o cinema dança entre as pessoas, tece relações, imagens e realidades compartilhadas, ele sempre vai sobreviver. Esse é o seu super poder.