Perfil: Safi Faye (Senegal)

por Evelyn Sacramento

Safi Faye fala em entrevista: “mesmo que eu possa escrever um roteiro para meus filmes, eu basicamente deixo os camponeses livres para se expressarem na frente de uma câmera e eu escuto” (PFAFF, 1988).

Considerada a primeira cineasta africana a produzir cinema comercialmente, Safi Faye vem de uma grande família de camponeses da aldeia Fad’jal (localizada ao sul de Dakar). Seu pai era um negociante polígamo e chefe de aldeia, e ela tinha treze meios-irmãos e treze meias-irmãs, que pertenciam ao grupo étnico Sérère. 

Safi Faye tem o campo não só como território umbilical, como também como espaço de pesquisa e temática para seus filmes. Ela analisa de perto a vida dos aldeãos, denunciando a condição de subalternidade em que são submetidos, seja pelas politicas governamentais, ou a seca e fome que se alastra pelos interiores dos centros urbanos. 

Safi viveu e estudou em Dakar, onde obteve o titulo de professora primária pela École Normal de Rufisque. Trabalhando como professora, ela teve acesso a ambientes artísticos e culturais do Senegal. Foi em uum desses momentos que ela conheceu o etnólogo e cineasta francês Jean Rouch (1917-2004), no I Festival de Artes Negras de Dakar em 1966, e a partir deste encontro teve sua primeira experiência no cinema, numa pequena atuação no filme etnográfico Petit à Petit (França, 1972).

Safi Faye em Petit à Petit.

Este encontro com Rouch é comumente visto como momento que marca a sua entrada no cinema, porém, para Safi, o encontro com o realizador francês não determinou que ela viesse a ser cineasta, como afirma em entrevista para o quadro La Leçon de Cinéma da plataforma Dailymotion,

“(…) Existe a impressão de que os africanos não podem fazer nada sem um supervisor. Rouch nunca disse que era por causa dele que eu sou uma cineasta e nem eu fiz essa afirmação. As pessoas fazem as coisas, e África acaba sendo vista em termos simplistas”. [1]

É importante destacar esse posicionamento, pois Safi Faye nem sempre esteve de acordo com a etnografia realizada por Rouch. Além disso, ela reivindica sua autonomia, enquanto artista e etnóloga. 

No ano de 1972, Safi Faye muda-se para Paris e inicia os estudos em Etnologia na École Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales, e, no ano seguinte, ingressa na escola de cinema Louis Lumière. Foi neste período que a realizadora fez seu primeiro filme [2], o curta-metragem La Passante (1972), inspirado no poema A une Passante (1857), de Charles Baudelaire (1821-1867). Desde que fez seu primeiro filme, Safi Faye realizou dez documentários abordando o continente africano, três longas-metragens e um filme de ficção.

Em 1973, ela dá início às filmagens do documentário Kaddu Beykat / Carta Camponesa (1975), onde faz uma análise da situação econômica que vive o Senegal nos anos 1970, denunciando a difícil conjuntura de famílias agricultoras. Kaddu Beykat foi filmado entre os anos 1973 e 1975, e o filme coincide com as pesquisas acadêmicas sobre o seu território de origem que ela vinha desenvolvendo enquanto estudante de etnologia. Safi sai do filme etnográfico de Rouch para fazer a sua própria etnografia, a partir dos seus termos e olhar.

Este filme escreve seu nome na história dos cinemas africanos. Revelando seu pioneirismo, Kaddu Beykat foi o primeiro filme a ser feito por uma mulher africana com distribuição e reconhecimento internacional. Foi censurado no Senegal ao mesmo tempo em que era premiado em diversos festivais de cinema, como o Prémio Georges Sadoul e o Prêmio da International Federation of Film Critics (FIPRESCI), e do Office Catholique Iternational du Cinéma (OCIC), ocorrido em Berlin em 1976.

Em 1975, Faye continuou seus estudos em etnologia na Sorbonne, obtendo o titulo de doutora pela Universidade de Paris VII no ano de 1979, tendo como objeto de pesquisa os Sérère. Essas descobertas sobre o seu próprio povo resultaram nos filmes Fad’jal e Goob na nu, ambos finalizados também em 1979. Neste mesmo ano é convidada a integrar o corpo docente da Universidade Livre de Berlim, onde continua seus estudos com produção de vídeo.

Além dos filmes autorais, muitas de suas produções foram realizados através de apoio ou financiamento da ONU e da UNICEF. Isso se deu por entender o seu engajamento nas lutas pela terra, expondo muitas vezes a condição da mulher no ambiente rural, como também sobre imigrantes, desigualdade social, entre outros aspectos.

Safi Faye encerra sua filmografia com o longa-metragem Mossane (1996), seu único filme de ficção. A condição da mulher africana é novamente retomada através da história de Mossane, uma garota da aldeia Mbissel, e o enredo é inspirado numa mitologia de uma menina de quatorze anos que a cada duzentos anos é devolvida aos ancestrais pelas águas do rio Mamangueth.

Embora seja uma obra totalmente ficcional, a realizadora se apoia numa construção etnográfica para criar mitos. Se nos filmes anteriores ela flerta com a ficção para construir suas narrativas documentais, aqui ela fez o contrário. Ao estabelecer um jogo com as imagens etnográficas, em vez de usar o filme para a investigação antropológica, ela usa a estética, que não só vai muito além de um uso mimético e representacional da câmera, mas que desvia o conhecimento antropológico (GROOF, 2018). Mossane foi apresentado na seleção oficial do Festival de Cinema de Cannes em 1996 e foi convidado para uma segunda exibição no ano seguinte.

Stills de Mossane.

Safi Faye transita entre extremidades e espaços de fala que foram demarcados pela colonização. O primeiro é esse olhar íntimo sobre suas vivências no interior da aldeia, a relação com a família e com a comunidade. O outro é o olhar a partir de sua trajetória pela diáspora. Foi a sua saída da aldeia que a permitiu ter um olhar-duplo sobre seu território, e esses aspectos provocaram transformações fundamentais que ficaram expressas em sua obra. Ela não só realizou pesquisa sobre sua comunidade, como também fez filmes sobre/com ela, no momento em que fez um percurso de aprendizado e de pesquisa na França.

É neste terreno familiar que perpassa o ambiente rural, as consequências da colonização, as migrações, questões econômicas, ambientais, climáticas e de gênero, que se insere a filmografia desta camponesa etnóloga ou vice-versa. Isso mostra que sua pesquisa acadêmica e parte da filmografia estavam em constante diálogo, buscando direcionar um olhar interior para as questões que a moviam.

Importante dizer que Safi Faye mostra como estes espaços percorridos em sua trajetória pessoal e acadêmica, foram determinantes para sua obra, nos possibilitando uma reflexão sobre a condição de fala do sujeito subalternizado, que adquire poder de voz ao se apropriar do cinema para escrever e produzir suas próprias narrativas, questionando o que foi necessário e o que possibilitou a saída do lugar de objeto para o lugar de sujeito do discurso.

Safi Faye propõe em seus documentários um modelo narrativo observacional, ao mesmo tempo em que a relação de intimidade é colocada em jogo. A relação de intimidade do olhar que é estabelecida pela autora fala de um “nós” a partir de uma voz que é sua, de seus familiares e companheiros de aldeia. Nesse sentido, sua pesquisa antropológica e os filmes possibilitam uma reflexão sobre si, sobre o território e sobre seu lugar de africana em constante movimento, que vai e que volta. A realizadora estuda sua comunidade e faz um percurso de aprendizado e pesquisa como numa necessidade política de se autorrepresentar (SACRAMENTO, 2016. p. 95). Safi Faye optou pela etnologia para compreender melhor o continente, e a câmera foi uma importante ferramenta para retratar aquilo que ela estava observando (ELERSON, 2004).

[1] A transcrição da entrevista pode ser acessada aqui: https://africanwomenincinema.blogspot.com/2010/05/safi-faye-role-model.html Acesso em: 12 de Março de 2022.
[2] Sua filmografia é composta pelos títulos: La Passante (1972), Revenge (1973), Kaddu Beykat (1975), Fad’jal (1979), Goob na nu (1979), 3 ans 5 mois (1979-1983), Man Sa Yay (1980), As Women See It? (1980), Le âmes au soleil (1981), Selbé et tant d’autres (1983), Ambassades Nourricières (1984), Racines Noires (1985), Elsie Hass, femme peintre et cinéaste d’Haiti (1985), Tesito (1989), e Mossane (1996).
REFERÊNCIAS

DE GROOF, Matthias. Relação do filme etnográfico com o cinema africano: Safi Faye e Jean Rouch. Antropologia Visual , v. 31, n. 4-5, pág. 426-444, 2018.

DOS SANTOS SACRAMENTO, Evelyn. Safi Faye: Cinema e percurso. Revista Cantareira, n. 25, 2016.

ELLERSON, Beti. (2012), Towards an African women in cinema studies, Journal of African Cinemas 4: 2, pp. 221–228, doi: 10.1386/jac.4.2.221_1.

ELLERSON, Beti. 2004. “African through a Woman’s Eyes: Safi Faye’s Cinema”. In: Francoise Pfaff (ed). 2004. Focus on African Films. Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press. P. 195-201.

PFAFF, Françoise. Twenty-five  black african filmmakers: a critical study, with filmography and bio-bibliography. Nova Iorque: Greenwood Press, 1988.

Safi Faye: Role Model | La Grande Référence. <https://africanwomenincinema.blogspot.com/2010/05/safi-faye-role-model.html> Acesso em: 10 de Março de 2022

UKADIKE, Nwachukwu Frank. Questioning African Cinema: conversations with filmmakers. U of Minnesota Press, 2002.