Filme Homem Novo (2023), de Carlos Yuri Ceuninck
Por Renato Damasceno
O filme Homem Novo (2023), segundo longa-metragem documental do diretor cabo-verdiano de descendência belga Carlos Yuri Ceuninck, compôs o rol de produções atreladas ao foco Centenário Amílcar Cabral da Mostra de Cinemas Africanos 2024.
Recorrendo bastante a imagens alternadas entre os planos geral e aberto, o documentário oferece ao espectador um belo espetáculo da natureza, com paisagens montanhosas e/ou marítimas, e visões aproximadas de pedras ou plantas, que integram o ecossistema da Ilha de São Nicolau, em Cabo Verde, onde, na pequena comunidade de Ribeira Funda, mora, sozinho, um idoso, o denominado “homem novo” do título.
O filme começa com o final comum a todos os homens. Um quadro exibe uma lápide com o registro “Quirino Rodrigues (28/11/1944 – 31/01/2022)”. A partir daí, além da paisagem natural, tem-se contato, em diferentes planos e momentos do dia, com o mencionado homem, magro, que caminha com alguma dificuldade, pesca, ouve um rádio de pilha, único meio de interação com o mundo exterior, e fuma cigarros. Sugere-se que o cotidiano daquele homem se resume a essas atividades, realizadas sempre na solidão.
O silêncio, próprio do isolamento social em que ele se encontra, é rompido de forma intermitente por curtas frases, com narração em off, falada pelo próprio homem em crioulo cabo-verdiano, idioma que, em algumas palavras, revela proximidade com o português, mas, no geral, é incompreensível, evidenciando a imprescindibilidade das legendas.
As falas são alusivas à sua condição de vida, em geral, vista como um sonho; à pesca, atividade que parece lhe garantir subsistência; ao destino e à morte. Embora carregadas de alguma obviedade, transmitem certa sabedoria, própria ou mais comum àqueles que, por escolha própria ou não, em idade madura, adotam um modo simples de viver.
Trata-se de um documentário de observação no qual há, talvez, uma excessiva valorização das imagens da natureza, tanto que, muitas das falas acontecem sem sincronia com o narrador, em planos gerais ou abertos em que se verifica a presença distanciada do homem. Não se descarta a possibilidade do filme ser considerado uma forma de exotização daquele indivíduo, vivendo naquela condição, como se pertencesse a uma outra espécie, objeto de um estudo etnográfico.
Por intermédio de outra narradora em off, irmã do velho, residente numa estância próxima, é revelada a razão daquele local, antes habitado por uma comunidade, ter sido abandonado por todos, exceto pelo morador persistente. A queda de um “pedregulho” de uma das montanhas do local e a consequente morte de um jovem teria sido o fato determinante para o êxodo, razão ampliada pela crença quase unânime na comunidade de que, depois disso, o local se tornara amaldiçoado.
O documentário pode suscitar no espectador muitos questionamentos relativos à biografia do homem, suas motivações para permanecer e sobre o seu cotidiano (Casou? Tem/teve filhos? Qual a razão para ter permanecido? Como adquire cigarros e fósforos, pilhas para o seu rádio e outros de bens de consumo necessários para a sua sobrevivência? Quem é aquele homem que o acompanha, no barco, na pescaria?). Ou seja, é razoável inferir que o seu isolamento não se deu em tempo integral ao longo dos 30 anos em que teria sido o único morador da localidade de Ribeira Funda.
Em determinados momentos, aparecem imagens cuja conexão com a narrativa principal não é explícita, mas podem ser associadas a lembranças da infância e de situações festivas quando o homem ainda vivia em comunidade.
Levado pela irmã para a estância onde mora, o homem, nos seus olhares, se revela deslocado, fora do seu habitat, aguardando, como disse, a “carta da morte”, o que faz lembrar o livro Intermitências da Morte, de José Saramago, em que, a morte, como personagem, depois de sumir num dia de virada de ano e provocar grandes confusões em função da inesperada imortalidade humana, mesmo de pacientes terminais, retorna implacável, mas informando, com antecedência de alguns dias, a sua iminente chegada aos futuros mortos, por intermédio de missivas.
A ideia de mostrar, no cinema, a vida de um homem solitário em isolamento social não é original. O documentário brasileiro A Alma do Osso (2004), de Cao Guimarães, acompanha o cotidiano de Domingos Albino Ferreira, 72 anos à época, conhecido como Dominguinhos da Pedra, que, há 41 anos, vivia sozinho em uma caverna em Minas Gerais.
No catálogo da Mostra de Cinemas Africanos, Jusciele Oliveira, no texto “Cabral vai ao cinema: legado de Amílcar Cabral”, faz alusão ao documentário, afirmando que “o título do documentário Homem Novo faz referência direta aos ideais de Cabral, notadamente, ‘Um novo homem, plenamente consciente dos seus direitos e dos seus deveres nacionais, continentais, internacionais’ (Cabral, Amílcar, Guiné-Bissau: nação africana forjada na luta, 1974)”.
Do ideal acima, pode-se inferir a partir do filme: um homem novo, que, mesmo consciente dos seus direitos e deveres comunitários, é livre para decidir ficar só.
Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2024 da Mostra de Cinemas Africanos em Salvador, ministrado pelo crítico de cinema Rafael Carvalho.