Cosmopoéticas da neve negra

por Marcelo Ribeiro

Afrique sur Scène

No inaugural Afrique sur Seine, de 1955, um curta de pouco mais de 21 minutos, Paulin Soumanou Vieyra, Mamadou Sarr, Jacques Mélo Kane e Robert Caristan, compondo o Groupe Africain du Cinéma do Institut d’hautes études cinématographiques (IDHEC, atual FEMIS), reivindicam o que se pode entender como um direito de olhar, ao filmar a metrópole em que experimentam o desterro, diante da interdição estatal de filmagens nos territórios coloniais franceses na África sem autorização prévia. Ao controle censor imposto pela ordem visual colonial sobre espaços da África, os estudantes opõem uma reivindicação do direito de olhar que, para se sustentar, deve buscar a África em outros lugares – por exemplo, na própria metrópole, em suas ruas, em suas praças, em seus prédios etc. Se a ordem visual colonial determina que só deve ser possível olhar a África se isso ocorrer sob o controle das autoridades francesas, o Groupe Africain du Cinéma busca olhar a África, em primeiro lugar, ali onde a ordem colonial supõe que ela não existe, ali onde ela deve ser impedida de aparecer, exceto sob o signo da assimilação civilizacional, ali onde qualquer África deve se inscrever como parte subordinada ou permanecer sem parte – em suma, no espaço metropolitano, simbolizado, desde o título do filme, pelo rio Sena.

Groupe Africain du Cinéma, nas filmagens de Afrique sur Seine. Créditos: PSV Films

A censura é estatal, decorrente do Decreto Laval, de 1934, mas opera também na situação social dos primeiros estudantes negro-africanos que se graduam no IDHEC. Seu exílio é também feito de pouco dinheiro. Pelo menos um filme anterior de Paulin Vieyra, C’était il y a quatre ans (1954), também realizado no IDHEC, pode nos instigar a imaginar as teias frágeis e densas que se tecem entre eles [1]. Além disso, o contexto em que filmam Afrique sur Seine deve ser reconhecido como o de uma França em tensão crescente, diante da iminência da derrocada de seu império colonial – e, portanto, o de franceses preocupados mais ou menos direta ou violentamente com a manutenção da economia material e simbólica – isto é, também, imagética e sensível – que sustenta o colonialismo. É justamente essa economia, em seus múltiplos sentidos, que os cinemas africanos devem complicar, se não perturbar ou até mesmo interromper, para tornar possível a emergência de sua multiplicidade.

Para perturbar a circulação regular e a distribuição de lugares, papéis e funções que definem economia colonial, em sentido amplo, Afrique sur Seine realiza gestos incisivos, como a inversão do sentido do olhar que define a experiência colonial [2], mas há no filme, igualmente, uma inscrição silenciosa que condensa seu sentido de perturbação. É o que está em jogo no título do filme, como o verso e o reverso de uma folha de papel: por um lado, o título pode ser lido como uma designação de lugar (similar à de comunas francesas como Neuilly-sur-Seine ou Asnières-sur-Seine); por outro lado, quem diz Afrique sur Seine, isto é, em uma tradução literal, África no Sena, diz também, sem mudança de pronúncia, o que se escreveria como Afrique sur Scène, isto é, África na cena ou África em cena, ou ainda África no palco, desdobrando assim um erro e uma errância que me parece crucial resguardar, e não corrigir ou ignorar. Há uma cena parisiense e francesa, assim, da qual a África permanece excluída, na qual os sujeitos africanos permanecem sem parte e sem participação, e o que o filme do Groupe Africain du Cinéma inaugura é, entre outras coisas, uma perturbação da economia que sustenta essa cena e um questionamento político das formas de policiamento que demarcam suas fronteiras.

Still de Afrique sur Seine.

A África que se coloca em cena em Afrique sur Seine é múltipla como os estudantes envolvidos no filme e não configura uma origem unificada, mas um horizonte heterogêneo de pertencimento – e talvez seja preciso escrever: pertensimento, para fazer justiça à silenciosa errância que deriva entre o Sena e a cena e para registrar, com um “s” onde se esperaria um “c”, a tensão constitutiva do modo como o nome de ‘África’ se inscreve no filme. Talvez se possa dizer que, aqui (mas não apenas aqui), o pertensimento à África não obedece a uma lógica de filiação, mas a uma gráfica da dispersão diaspórica, que suplementa o deslocamento implicado no desterro metropolitano com uma série de deslocamentos históricos anteriores. Se há uma África em cena em Afrique sur Seine, nessa cena de emergência dos cinemas africanos, é uma África que transborda o continente, espaçada pelas histórias de diferentes diásporas: aquela que vincula o continente às Antilhas (Robert Caristan nasceu na Guiana Francesa) e às Américas (a atriz Marpessa Dawn, que interpreta uma das personagens do filme, é afro-americana), assim como aquela que o vincula à Europa (sob a forma da imigração para as metrópoles colonizadoras). Nos múltiplos espaçamentos que atravessam e constituem a inscrição do nome de ‘África’ em Afrique sur Seine, o que está em jogo é a heterogeneidade dessa cena inaugural de emergência dos cinemas africanos, e a errância que define tanto suas condições de possibilidade quanto seus horizontes de sentido.

Os tempos da neve

Et la neige n’était plus… (E não havia mais neve…, 1965), de Ababacar Samb-Makharam, encena o retorno às origens após o desterro metropolitano como uma experiência contraditória do desejo [3]. Cerca de dez anos depois de Afrique sur Seine, já no contexto de um Senegal independente, sob os auspícios do Ministério da Informação do Estado recém-constituído, os 21 minutos do filme de Samb-Makharam continuam procurando pela África. Retornar não é um movimento simples, e a voz do protagonista nos conduz através da narrativa com uma meditação angustiada sobre uma África que, embora pareça ter permanecido a mesma, é o espaço ambivalente de uma inquietação irredutível, atravessada por questionamentos. Assim como em Afrique sur Seine, no decorrer de Et la neige n’était plus… a música desempenha um papel crucial para a elaboração dos sentidos das imagens. No filme de 1955, registros etnográficos do setor de musicologia do Musée de L’Homme e referências ao blues estão entre as sonoridades que enquadram e acompanham o olhar errante sobre a metrópole parisiense e o discurso reflexivo da voz off que ali encontra, talvez com ironia, “a capital do mundo, a capital da África negra”. No filme de 1965, Samb-Makharam parte do contraste entre a música orquestral melódica, de conotação euro-ocidental, e a música da kora, que condensa um sentido de africanidade. O contraste desdobra, em termos musicais, uma série de relações de contraste que se disseminam pelo filme, identificadas no discurso reflexivo do protagonista: contrastes nos modos de comer e de se comportar, entre a família que permaneceu na África e o retornado que parece ter se tornado estrangeiro, ou ainda entre as pessoas mais velhas, associadas às tradições, e as mais jovens, associadas à ocidentalização.

Após anos de ausência em que, entre outras coisas, o frio e a neve conduziram, segundo o protagonista, ao esquecimento da África ou ao lamento por ela, ele retorna e deve se lembrar: a narrativa do filme é aquela que conduz do estranhamento da chegada até a retomada da linhagem ancestral e da vida em comum como abertura para o futuro. É sua avó quem “tinha razão” [avait raison], diz o protagonista, que se dirige a si mesmo: “é a partir daqui que você reencontrará teu equilíbrio e o sentido da tua vida [c’est à partir d’ici que tu retrouvera ton équilibre et le sens de ta vie]. É isso que conduz ao desfecho do filme e à promessa ambivalente em que ele se encerra e, ao mesmo tempo, se abre em direção ao futuro. O protagonista caminha com uma mulher entre as árvores, e o filme nos oferece um diálogo entre os dois. A certa altura, a mulher pergunta como eram os países que o homem visitou; ele responde e menciona a neve.” A neve? Eu nunca a vi. Ela é branca? Por que não existe neve negra?” [La neige ? Je ne l’ai jamais vue. Elle est blanche ? Pour quoi il n’y a pas de neige noire ?], diz ela. “Porque não existe” [Parce qu’il y en a pas], responde ele, antes de fazer sua promessa ambivalente: “mas se você quiser realmente, vou fabricá-la para você.” [mais si tu en veux vraiment j’en fabriquerais pour toi]. O que é a “neve negra” nessa promessa delirante? Se a neve negra não existe e, por isso, será preciso fabricá-la, de que artifício e de que ficção se trata nessa fabricação por vir? Não seria a neve negra um dos nomes do que é impossível e necessário ao mesmo tempo?

O que está em jogo na metáfora da “neve negra” é a vida em comum e seu fundamento aberto e, portanto, contingente: não há vida em comum sem uma abertura para o futuro, que pode ser um prolongamento do presente (o impossível: não existe neve negra hoje, não existirá neve negra amanhã), mas também pode se revelar como possibilidade de um advento, de uma chegada do outro, da alteridade mais inesperada e inantecipável, a alteridade da neve negra que o protagonista vai fabricar (o necessário: a neve negra existirá, se for desejada). A possibilidade da vida em comum corresponde, nesse contexto, ao desejo e ao delírio de uma comunidade descolonizada. A imaginação da possibilidade de uma comunidade descolonizada depende do desejo de um retorno às origens que permanece impossível como a “neve negra” que o protagonista promete à sua amada. Para a imaginação colonial que predomina no cinema, a descolonização aparece como a impossibilidade delirante dessa “neve negra” que, como as peles negras, a história do cinema nunca tinha sabido filmar fora do regime do exótico. Para os cinemas africanos emergentes nas décadas de 1950 a 1970, de modo geral (mas com variações que seria preciso, em outro momento, detalhar), trata-se de descobrir, afinal, o que pode vir a ser a “neve negra”, em experiências do cinema que reivindicam o direito ao delírio [4] e dedicam-se a deslocar e a redescobrir a potência criadora da arte cinematográfica. Se a “neve negra” não existe e constitui, portanto, a impossibilidade mais absoluta, o que se torna necessário é inventar a “neve negra”, que se revela a cifra impossível de algo que ainda não tem nome. Ao impossível da “neve negra”, é necessário dedicar um intenso trabalho de imaginação (que se define, afinal, como uma convergência disjuntiva, móvel e inquieta do desejo e do delírio).

A “neve negra” pode ser lida, assim, como um dos nomes da promessa da descolonização – que talvez tenham se revelado impossível nos anos seguintes, que continua necessária. O que está em jogo na metáfora desse nome indócil e na desordem que desencadeia é uma potência cosmopoética, que emerge em diferentes contextos da história do cinema por meio de gestos mais ou menos informes de contestação e perturbação da ordem colonial-moderna de destruição de mundos. A transformação de uma potência cosmopoética informe em formas de desordem é o que confere às poéticas (cinematográficas) da descolonização seu sentido cosmopoético, uma vez que a ordem que a experiência da descolonização confronta é uma ordem de destruição de mundos. A promessa de “neve negra” condensa o sentido cosmopoético dos cinemas africanos: é a promessa de um impossível, de um inimaginável, que deve, contudo, ser imaginado e tornado possível, como outra coisa, como algo que não cabe, portanto, em seu próprio nome. Como promessa de “neve negra”, a descolonização delirada por Samb-Makharam transborda a experiência histórica da descolonização, nomeando seu abismo, tornando possível identificar, de forma delirante, o que a descolonização histórica, ao fundar Estados nacionais, parece ter deixado de lado. Ao fundar Estados nacionais, a descolonização histórica reproduz a ordem confrontada, reinstaurando processos de colonização em outras escalas e reiterando a pretensa impossibilidade da “neve negra”. Contra esse falso realismo, uma poética da descolonização reivindica o direito ao real. Reivindicar o direito ao real como aquilo que todo realismo reprime e exclui sob o signo do irreal: eis o gesto paradoxal que constitui toda poética da descolonização como cosmopoética, e vice-versa. O real, isto é, o impossível, a invenção delirante, a “neve negra”.

* Uma versão anterior de parte deste texto foi publicada com o título “Notas sobre a neve negra”, em 11/08/2019, no incinerrante: https://incinerrante.com/textos/notas-sobre-a-neve-negra/ 

[1] https://incinerrante.com/textos/retorno-captura-abertura/

[2] Desenvolvo um pouco mais essa linha de argumentação no artigo acadêmico “Cosmopoéticas da descolonização e do comum”, publicado da Rebeca - Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (vol. 5, n. 2, jul.-dez. 2016, p. 1-26). Também tenho trabalhado com algumas das noções a que recorro aqui em textos como “Desterro, desejo, delírio” e “Retorno, captura, abertura”, publicados em catálogos de mostras e reunidos no incinerrante: https://incinerrante.com.

[3] https://incinerrante.com/textos/desterro-desejo-delirio/

[4] https://incinerrante.com/textos/desterro-desejo-delirio/