Um amor diante de duas visões do Islã, da liberdade, da religião e uma barragem contra o radicalismo em “O Pai de Nafi”

por Detoubab Ndiaye

TÍTULO
O Pai de Nafi (Baamum Nafi)
DIREÇÃO
Mamadou Dia
PAÍS
Senegal
ANO
2019

O filme Nafi’s Father, na língua Pular: Baamum Nafi (O Pai de Nafi), do cineasta senegalês Mamadou Dia aborda os temas da família, do amor e da ameaça do radicalismo religioso. Saudado pela crítica, a obra foi laureada com o Léopold d´Or do 72° Festival de Locarno na Suíça em 2019. Mamadou Dia, que foi jornalista por dez anos, inspirou-se em cenas vividas na África para seu primeiro longa-metragem.

Uma cidade no Senegal, entre rio e deserto, aparece em vista aérea. Entregue de cima, quase borrado sob a luz branca que o esmaga, ainda é apenas um cenário incerto. Depois, na poeira das ruas e na escuridão das casas, as silhuetas de homens e mulheres dão vida e singularidade à pintura. O filme imediatamente nos mergulha em um cenário autêntico: uma pequena cidade em algum lugar do Senegal com estradas de terra, paredes sem gesso, currais de cabras, persianas de metal etc. Tudo se afirma calmo e pacífico, até o confronto de dois irmãos com personagens opostos.

Cada um, filmados bem de perto, traz pistas e detalhes, desenhando os primeiros contornos da história. O enredo se passa em família. Primeiro, Tierno (Alassane Sy), o imã (chefe religioso da mesquista) com o rosto doce, cujos pulmões doentes o levaram ao médico pela enésima vez. Sua filha, Nafi (Aicha Talla), apaixonada por seu primo, Tokara (Alassane Ndoye), ambos querendo se casar e depois ir estudar em Dakar. Ousmane (Saikou Lô), pai de Tokara e irmão de Tierno, retornou à sua cidade natal depois de muitos anos passados na Europa.

Esse pequeno mundo familiar, capturado nas cenas repetitivas do cotidiano, já traz as tensões sobre as quais o diretor Mamadou Dia constrói, com infinita paciência, seu filme. O Pai de Nafi evolui como o fio de um arco antes que a flecha seja lançada. Cada vez mais tenso, até vibração e relaxamento. Enquanto isso, a história, carregada de tensões e acertos de contas, terá ganhado uma dimensão trágica, o que corresponde a uma visão imaginária do diretor do que poderia acontecer ao Senegal, seu país natal, se os islamistas tomassem o poder. A direção de atores e uma câmera que sabe estar por perto sem quebrar a distância fazem maravilhas. A construção teatral de certos planos impressiona. A música de Baaba Maal, um dos grandes cantores de etnia fulani, revigora a história.

Jornalista experiente, Mamadou Dia presenciou situações semelhantes, principalmente na Nigéria e no Mali. Ele se inspirou nele mesmo para escrever seu roteiro, que, baseado na relação de dois irmãos, destaca certas realidades da África subsaariana. A disfunção – até mesmo a ausência – do Estado e o descrédito de que sofre com a população, a miséria fragilizando o núcleo familiar e o poder das redes sociais atravessam assim a história de O Pai de Nafi. Cuidando para nunca julgar, o diretor permanece grudado na intimidade de seus personagens. Um ponto de vista que, acompanhado ao ritmo lento dos dias e dos seus rituais, nos permite revelar a complexidade dos percursos, das escolhas passadas ou futuras.

Luta desigual

Ousmane foi capaz de decidir. Muito jovem, partiu para a Europa para descobrir o mundo, longe da família. Voltou radicalizado, com vontade de desenvolver sua cidade e enriquecer. Por outro lado, Tierno teve outra opção, quando seu pai morreu, a não ser assumir e se tornar um líder religioso. Também por convenção, ele teve que se casar com uma mulher mais velha que ele. Dessa união nasceu uma filha, Nafi, com quem mantém um lindo vínculo. Além disso, quando ela lhe conta do seu desejo de se casar com seu primo Tokara, Tierno não se opõe. Ele se contenta em apresentá-la a outros garotos para tentar fazê-la mudar de ideia. Mas cada um mantém suas posições e chega a hora de definir as regras do casamento. Momento que lança as primeiras bases do conflito opondo primeiro os dois irmãos, depois dois clãs dentro da pequena cidade.

Por que o Senegal?

O controle terrorista sobre uma aldeia não existe no Senegal na vida real. No entanto, quando era jornalista, Mamadou Dia pôde observar situações semelhantes às do filme. Ele confidencia em uma televisão do Senegal: “Fui a Timbuktu no Mali várias vezes, também fui à Nigéria. Quando a crise começou no Mali com os jihadistas, fiquei realmente surpreso: não há ninguém mais pacífico do que o povo maliano. Gente, como o extremismo religioso pode se firmar no Mali? No Senegal, a opinião comum é que uma deriva como essa é impossível. Foi o que o prefeito disse a Tierno: ‘Afinal, estamos na República’. “Mas nada prova que isso não possa acontecer no meu país. Acho que foi importante levantar o debate em casa, com a minha própria língua, com as pessoas da minha área”.

Matam se torna Yonti

Mamadou Dia filmou em Matam, uma das quatorze regiões (equivalente do Estado) do Senegal e a menos desenvolvida, mas renomeou a cidade de Yonti para os propósitos do filme por duas razões: o terrorismo não diz respeito a Matam e também para não perturbar atores não profissionais. Ele observa que, por exemplo, a pessoa que faz o papel de prefeito trabalha na prefeitura de Matam há vinte e cinco anos. Ele viu todos os prefeitos da cidade passarem. Segundo o ator, quando o cineasta lhe disse que faria o papel de prefeito de Matam, ele ficou perturbado. Mas o tranquilizou de que seria o prefeito de Yonti (nome fictício), e que ele tinha que fazer como o mais altivo dos prefeitos de Matam que ele conheceu. Isso foi a deixa que o libertou.

Língua Fulani

Le Père de Nafi é falado em Pular, a língua dos Fulanis, um dos vários grupos étnicos do Senegal e que se fala em todas as regiões da África Ocidental até o Chade e Camarões, no centro do continente. O próprio autor do filme reconheceu a preferência especificamente assim: “É a língua que meus atores e eu dominamos melhor. A diáspora Fulani é estimada em cerca de 50 milhões, o que a torna uma língua mais falada do que o Wolof [língua majoritária no Senegal falada até na vizinhança como Gâmbia, Mali, Mauritânia e aos poucos na Guiné-Bissau e na Costa do Marfim]. E então na minha região, as pessoas falam bem devagar. Quando você cumprimenta alguém como bom dia, o outro, muitas vezes demora três segundos para responder. Essa é a realidade. Eu queria imprimir esse ritmo no filme”.

Atores não profissionais

Com exceção dos dois papéis principais, os irmãos Tierno e Ousmane interpretados por Saikou Lo e Alassane Sy, todos os atores do filme são amadores. Para encontrá-los, Mamadou Dia foi ao centro cultural Matam, onde os jovens se encontram. Alguns fizeram um pouco de teatro na escola, se divertiram fazendo esquetes e são conhecidos do autor Mamadou Dia. Os atores formaram um grupo, apresentaram-se à câmera duas semanas antes do início das filmagens e o resultado impressionou pela inteligência e habilidade que mostraram rapidamente. A interpretação dos atores também não passa despercebida. Alassane Sy revela-se muito credível no papel de Tierno, o imã moderado que encarna uma personagem enfraquecida pela doença e de natureza introvertida, pouco dada à efusão de sentimentos. O contraste com seu irmão é ainda mais impressionante. As filmagens ocorreram de dezembro de 2018 a janeiro de 2019.

Uma guerra fratricida

Sobre este argumento que pode parecer banal, Mamadou Dia apresenta a guerra fratricida que assola a pequena aldeia de Yonti. Se os pais de Nafi e seu namorado Tokara são irmãos, tudo se opõe a eles. A doçura de um e a violência do outro; a simplicidade do primeiro e a altivez do segundo, que se autodenomina “El Hadj” (nome que se dá a um homem que fez a peregrinação a Meca na Arábia Saudita, lugar sagrado dos muçulmanos. Para as mulheres, é usado o nome Adja). O casamento rapidamente se torna uma questão que vai além dos dois jovens. A avó os apoia e espera que esta aliança reconcilie seus dois filhos raivosos. Ousmane, pai de Tokara, por meio de presentes de casamento pretende comprar a bênção de seu irmão.

De fato, o imã da aldeia é Tierno: é, portanto, ele que os aldeões provavelmente seguirão no nível espiritual. Mas Ousmane acredita mais em um xeque com um islamismo rigoroso e armado. Para pôr as mãos na aldeia, este como emissário corrompe os camponeses pobres com sementes para agricultura familiar. Apesar da oposição de Tierno, as ruas rapidamente se enchem de hijabs negros (homens e mulheres com estilos radicais muçulmanos), como se vê em países muçulmanos que pregam o islamismo ortodoxo e radical.

Uma aldeia sublimada

A câmera de Mamadou Dia filma magnificamente esta aldeia que situa na sua infância, Matam. As imagens aéreas destacam o rio que margeia as casas e sublinham a pequenez do lugar, como se esse conflito pelo controle de uma vila tão anedótica tivesse algo de ridículo. A forma como os personagens se destacam contra o magnífico céu azul claro, a gravidade dos rostos – em particular o de Alassane Sy, que interpreta Tierno – atraem o olhar. As cenas diurnas, claras como a areia e o céu, alternam-se com a escuridão vermelha, verde e azul escura das noites, graças à iluminação noturna soberbamente sugerida.

Nascimento de um mito

Um dos pontos fortes deste filme, no entanto, é se elevar acima de sua ancoragem local e se aproximar do universal. As guerras fratricidas conferem-lhe uma dimensão mítica que a coloca numa forma de história alternativa. Não importa que os debates entre Tierno e seu irmão digam respeito à religião: uma de suas últimas trocas, que gira em torno do amor paterno, dá ao ciúme fraterno seu lugar de direito. São como Rômulo e Remo contemporâneos (alusão a história legendária dos fundadores de Roma da mitologia romana) lutando pelo controle de uma pequena vila senegalesa. 

O filme e o contexto atual sobre os jihadistas e o radicalismo na África do Oeste

Observamos e analisamos vídeos de pregadores salafistas (muçulmanos ortodoxos radicais) postados nas redes sociais. Suas análises permitiram detectar uma estratégia de alistamento com discursos que, à primeira vista, podem parecer inofensivos, mas que constituem terreno fértil para o radicalismo religioso. Senegal, o último bastião da África Ocidental contra o terrorismo, é um país onde 95% da população são muçulmanos. O islamismo é ali dominado pelo sufismo, corrente espírita muçulmana que muito tem contribuído para a estabilidade político-religiosa do país. A maioria dos muçulmanos pertence a irmandades religiosas, e as mais conhecidas são Tidjaniya e Mouridismo (confrarias). Os guias religiosos são altamente ouvidos e respeitados, promovem um Islã tolerante e aberto. Essas irmandades sufis são consideradas por vários especialistas como um baluarte contra o radicalismo religioso. Este país de 15 milhões de habitantes é, aliás, considerado o último bastião da África para a presença de correntes salafistas que se apresentam como uma alternativa ao modelo tradicional de irmandade.

Estas correntes salafistas competem com o modelo tradicional com o objetivo de suplantá-lo. Sua estratégia é usar a modernidade tecnológica para combater a modernidade social. Para isso, as redes sociais são amplamente utilizadas com a divulgação de diversos vídeos que servem para nós como matéria-prima para o estudo do radicalismo religioso muçulmano na África Ocidental. O principal alvo dessas correntes salafistas são os jovens que enfrentam problemas existenciais, desemprego, pobreza, etc., por lhe oferecerem um Islã mais comprometido e mais político, como vemos no filme de Mamadou Dia e também em Timbuktu, do mauritaniano Abderrahmane Sissoko. 

Um discurso que se adapta ao ambiente

O discurso se adaptou ao ambiente. Torna-se um moralizador, enquadra a prática do culto. A crítica à modernidade, à democracia e ao Ocidente não aparece à primeira vista. O que é visível é a crítica ao discurso da fraternidade. Os pregadores salafistas se apresentam como pessoas que vieram para purificar o islamismo do país. O discurso usado para falar com as populações é muito plano na aparência, mas há uma estratégia de esconder a agenda real enquanto se espera que o equilíbrio de poder seja favorável. Essa estratégia dificulta a detecção da periculosidade desse discurso, cujo objetivo final é suplantar uma ordem religiosa para estabelecer outra. Não se vê nada à primeira vista, mas há um trabalho de condicionamento mental e preparação psicológica para que outras formas de fala mais radicais possam passar. 

A ascensão do radicalismo religioso é motivo de preocupação para muitos países africanos, mesmo que o Senegal ainda seja relativamente poupado do fundamentalismo. Vimos atentados terroristas no Mali, em Burkina Faso, na Costa do Marfim, na Nigéria, na Argélia, no Chade, no Camarões, no Níger etc. No filme, a violência física e armada está penetrando gradualmente na aldeia de Yonti. É assim que o lugar que serve de igreja é totalmente degradado por militantes islâmicos liderados por Bassa, renomeado com o nome árabe de Abdallah, braço armado de Ousmane.

O filme não dá uma lição, como disse o diretor na época da estreia, não oferece uma solução, mas diz o que temos de mais caro nesta sociedade: a unidade familiar, a família que sustenta cada um de seus membros. No Senegal, a unidade familiar faz mais do que o Estado. O dinheiro que os senegaleses (imigrantes) que foram para o exterior enviam para suas famílias é maior que o PIB do país. Isso é reconhecido pelos governos que já passaram no poder. O extremismo começará atacando a família. Deve-se entender que nenhum dos extremistas do filme está realmente agindo com base na fé. Eles usam a religião como uma alavanca de poder, mas são principalmente pessoas mal intencionadas que querem tomar o controle de uma cidade para seu interesse pessoal. E aqui no filme, é um acerto de contas entre irmãos: Ousmane quer ser mais poderoso que seu irmão Tierno, que tem o controle da cidade.