Filme Geada de Netuno (Neptune Frost. 2021), de Anisia Uzeyman e Saul Williams
por Liliane Braga – Maganza Ndembwemin
A tecelagem e, para citar outros exemplos, a pedra lascada, a roda, a lança, a
conversão de recursos naturais, o uso da água, do fogo (roubado dos deuses no
paleolítico talvez pelo homo eretus há cerca de 800 mil anos atrás), uso de energias
renováveis, bem como a própria agricultura (e outros instrumentos “rudimentares” de
proteção e sobrevivência em locais hostis), podem ser todos considerados as tecnologias
mais elementares.
(“Isto não é magia; é tecnologia: subsídios para o estudo da cultura material e das transferências tecnológicas africanas ‘num’ novo mundo”)
Um musical de ficção científica afrofuturista punk transcendental no qual pessoas I-fi combatem a dívida cripto-colonial. Esse seria um resumo conciso paraGeada de Netuno (Neptune’s Frost, 2021). Abro, então, uma janela de contra-leitura ao projeto multimidiático escrito e composto por Saul Williams, co-dirigido com a diretora de fotografia Anisia Uzeyman.
Nessa janela, estão a ciranda entre personagens e paisagens de geografia humana-vegetal-mineral-animal em montanhas do Burundi… Loopings e reverbs sônico-visuais… Provérbios e falas em versos… Epopeia imagético-luminescente…. Aspectos que ainda assaltam meus sentidos, dias após a experiência de ver-ouvir-sentir esse projeto disfarçado de linguagem fílmica cujo nome já me arrebatou: Neptune (Netuno), planeta do sistema solar. Na astrologia, planeta que rege a espiritualidade, a fé, a intuição. Neptune e a geada… Nessa janela, Neptune é aquecidx por tecnologias outras – desde poros, pele e intelecto da comunidade negra que hackeia o sistema reutilizando o lixo-eletrônico e restabelecendo conexão cósmica, em elo de aprendizagens comunitário-gregárias intelecto-sensório-lunares.
Esse filme aguçador de sentidos, dessa janela, é uma odisseia de re-união da unidade do cosmo. Nela, observa-se o encontro de Neptune (Cheryl Isheja), uma pessoa intersexo errante, e Matalusa (Bertrand Ninteretse), uma figura gender bending que, desde criança, fora submetidx ao trabalho forçado em minas onde o poder colonial do capital explora seres humanxs e coltan, insumo usado em equipamentos eletrônicos e fundamental para o funcionamento dos smartphones. Esse encontro se dá em um “kilombo” que tem mentoras no lugar de mentores: Elohel (Rebecca Mucyo) e Memory (Eliane Umohiry).
Tekno é personagem nesta narrativa fílmico-poético-musical. Irmão de Matalusa, Tekno personifica o intento ocidental de robotização humana. Tekno é morto na mina de coltan ainda nas cenas iniciais. Tekno, nome “inspirado” por aquilo que um certo Ocidente cunhou chamar tecnologia. Saul Williams, em uma entrevista alhures, nomeia: “tecnologia moderna”. Na minha janela, traço um diálogo entre Williams e Renato Araujo, autor do livro do qual foi extraída a epígrafe que abre este texto: “nem mesmo as crianças confundem ‘tecnologia’ com computadores, máquinas eletrônicas superpoderosas e outros engenhos criados pelos japoneses, imitados pelos americanos e pirateado pelos chineses”. O motivo? Ela estaria “muito além da tecnologia elétrica, eletrônica e informática” (em “Isto não é magia; é tecnologia”).
Entre as tecnologias africanas, formas de conhecimento pré-existentes às potências globais ocidentais e extra-ocidentais, estão os conhecimentos quanto à extração de recursos naturais, o reconhecimento de regiões auríferas, as técnicas para agregar valor a matérias brutas. A exemplo de joalheria em ouro e prata e da fundição do ferro. No que diz respeito à comunicação à distância, os tambores e a astronomia são representantes de tecnologias do continente e centrais na roda policêntrica na qual se dá essa janela de contra-leitura. É da força invisível da árvore e da força invisível do animal que emerge da membrana percutida pela mão humana que se dá a linguagem do tambor/ngoma – “o primeiro bluetooth”, já diria Emicida. E é dessx planeta do sistema solar – Neptune/Netuno – que a personagem do título, um ser de conectividade I-fi/sem-fio, é herdeira. Ambxs, tambor e astronomia, re-unindo seres humanxs e cosmo.
Saul Williams, Anisia Uzeyman e Renatex, em diálogo imaginário que seguirei alimentando de olhos abertos ou fechados, ajudam a vedar do gelo cripto-colonial uma janela além-gêneros, fílmicos ou identitários.
(Se fosse uma comida, Neptune Frost estaria entre os pratos que provocam as papilas gustativas todas, exaltando cada paladar: doce, azedo, amargo, salgado e umami. Seria essa a tecnologia da língua?)
Em tempo: “Isto não é magia; é tecnologia: subsídios para o estudo da cultura material e das transferências tecnológicas africanas ‘num’ novo mundo” (2013), e-book de Renato Araujo (Renatex), está disponível gratuitamente neste link, disponibilizado pelo próprio autor.
Liliane Braga – Maganza Ndembwemin é Candomblezeira de Pyratynynga. Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora (CECAFRO-PUC/SP). Atua como assessora e consultora em culturas africanas, afrodiaspóricas e narrativas audiovisuais plurais. Suas reflexões acerca de cinemas e performances negrxs – que Liliane trata por “epistemes musicosmodançantes” – encontram-se disponíveis em revistas eletrônicas diversas. E-mail: lilianepbraga@gmail.com
Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2022 da Mostra de Cinemas Africanos em São Paulo, ministrado pela crítica de cinema Juliana Costa.