Filme Geada de Netuno (Neptune Frost. 2021), de Anisia Uzeyman e Saul Williams
por Jacqueline Kaczorowski
Neptune Frost é um filme que provavelmente trará ao espectador imagens e sensações inéditas. Gravado no Burundi, uma das cenas iniciais do filme é ambientada em uma mina de extração de coltan, na qual vemos um grupo de trabalhadores que “pagam o preço” necessário ao desenvolvimento tecnológico. Um desses trabalhadores, Tekno, ao se distrair brevemente de sua função, é atacado e morto por um capataz. Seu irmão, desesperado, acabará conseguindo fugir daquele destino e será um dos protagonistas que a trama acompanhará. O mesmo ambiente de trabalho será palco de uma das cenas mais impactantes do longa, em que esses trabalhadores tocam tambores sob uma luz que torna a cena de uma nitidez impressionante.
Outros momentos da obra tratarão também de revelar a tecnologia como produto do trabalho humano, cuja exploração tem cor e sangue. As cores recebem um tratamento cuidadoso e resultam num impacto visual responsável por grande parte da beleza do filme. A conexão entre o futurístico e as matrizes culturais enraizadas no continente africano, tão característica da estética afrofuturista, é trabalhada de modo a resultar na maior das potências oferecidas pela obra.
A duração das cenas é outro aspecto que chama a atenção e a trilha sonora contribui para a sensação de suspensão que o tempo distendido provoca. Original e cativante, a trilha fica e não fica na memória após o fim da sessão: é impossível esquecê-la, mas também praticamente impossível de cantarolar. Toda a atmosfera parece imersa em uma espécie de sonho que combina momentos obscuros e nitidez. Talvez esteja aí o princípio formal da obra, que acaba, em alguns momentos, por confundir o observador.
Em algum lugar estranho e indefinido entre as alegorias que beiram o didatismo e o hermetismo, a estrutura do filme também é identificada no espaço onde os hackers se encontram – uma espécie de entrelugar que não permite a entrada de qualquer um, mas cujos critérios não são revelados – e em um tratamento metafísico do ambiente virtual ancorado na tecnologia. Na maioria dos momentos, imagens não explicadas são fonte de maior interesse que discursos. Essas contradições instigam a imaginação de formas imprevistas, incomodam, mobilizam. Desta maneira, a trama que em muitos momentos parece paralisada pode convidar ao movimento.
Outro aspecto interessante é que, se não fosse explicitado nas resenhas haver uma personagem intersexo, talvez não fosse possível afirmar apenas assistindo ao filme. Embora não haja dúvidas do desafio aos padrões normativos, a personagem Neptune é capaz de invocar a mobilidade da identidade com abertura à interpretação. As “Binary stars” que nomeiam uma das canções mais marcantes do filme, por exemplo, além de evocar a beleza da imagem astronômica, carregam a polissemia do “binário” na letra cantada em vários idiomas – que remete tanto à linguagem de programação quanto às contemporâneas discussões sobre gêneros.
Se a arte, para ser considerada revolucionária, precisa sê-lo em seus próprios termos – ou seja, esteticamente, ao propor novas formas de olhar e perceber as coisas –, o mérito de Neptune Frost está não apenas em possibilitar novas aberturas sensoriais, mas também em provocar um estranhamento tão significativo que é difícil descrevê-lo. A necessidade de preencher as lacunas para tentar captar algo como um enredo, assim, talvez seja parte do chamado do filme à colaboração para transformações tão necessárias ao nosso contexto global.
Jacqueline Kaczorowski é doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo, sob orientação de Rita Chaves. Trabalha sobretudo com literaturas africanas, buscando investigar as intricadas relações entre produção artística e contexto histórico-social.
Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2022 da Mostra de Cinemas Africanos em São Paulo, ministrado pela crítica de cinema Juliana Costa.