Chadi Abdel Salam fez um percurso um pouco diferente até a sua chegada e estabelecimento profissional no cinema. Mesmo tendo exibido, ainda criança, uma forte veia artística, ele não teve nenhum apoio familiar para manter-se nas artes, e foi constantemente incentivado a escolher profissões fora desta seara. Após finalizar seus estudos regulares, foi para o exterior estudar artes teatrais, mas ao voltar para o Egito, acabou ingressando no curso de Arquitetura. Seus primeiros trabalhos relevantes foram ao lado do famoso arquiteto egípcio Ramses Wissa Wassef, no final da década de 1950, e, no início da década seguinte, acabou conseguindo entrar para a Sétima Arte. Salam desenhou decorações, ambientes cênicos e até mesmo figurinos para alguns filmes importantes egípcios com temática histórica, como Wa Islamah (1961), Almaz wa Abdul Hamuli (1962) e El Naser Salah el Dine (1963) e também esteve envolvido como assistente de decoração em Cleópatra (1963); como consultor histórico e supervisor de decoração, figurinos e acessórios no filme polonês Faraó (1966) e também colaborou com Renzo e Roberto Rossellini na série La Lotta Dell’uomo per la sua Sopravvivenza (1970). Foi com ajuda de Rossellini que Salam conseguiu o financiamento nacional para o seu projeto do coração, A Múmia (Al-mummia, 1969), filme que ele fez questão que tivesse apenas investimento egípcio, já que a temática clamava por uma obra inteiramente nacional, sem interferência de visões de produtores ou qualquer outro tipo de profissional de fora.
O roteiro, escrito pelo próprio Salam – que faz aqui a sua estreia na direção, sendo este também o seu único longa-metragem – é baseado em algo que ele leu a respeito do renomado egiptólogo francês Gaston Maspéro e o caso dos sarcófagos e múmias que foram trocados de lugar pelos sacerdotes de Amon. No século XIX, esses sarcófagos foram saqueados pela família Abd el-Rassul, que vendia os tesouros no mercado clandestino. Peças valiosas da 19ª à 21ª dinastia do Egito acabaram nas mãos de colecionadores estrangeiros, a um custo de memória cultural e de identidade social muitíssimo altos. Em entrevista reproduzida no portal Sabzian e retirada do periódico L’Afrique Litteraire et Artistique, nº14 (publicado em dezembro de 1970), o diretor afirma que também utilizou como fontes os livros História do Egito, do egiptólogo, arqueólogo e historiador americano James Henry Breasted; O Egito dos Faraós, do egiptólogo, linguista e filólogo britânico Alan H. Gardiner; e Tutancâmon: Vida e Morte de um Faraó, da egiptóloga francesa Christiane Desroches Noblecourt. Munido dessas fontes, Salam criou uma obra que opõe interesses individuais (de alguns homens, de uma família ou de todo um clã) aos interesses de uma nação inteira, que progressivamente perdia parte de sua história porque um grupo achava-se dono dos tesouros nacionais e não tinha nenhum conflito moral para com isso, afinal, segundo eles, os mortos estavam mortos e não precisavam de toda aquela riqueza. Já os vivos da aldeia precisavam comer, vestir, morar e viver bem.
Em pouquíssimo tempo de projeção o espectador entende que a importância da memória histórica como elemento cultural, emocional, moral e ético será um dos ingredientes da fita, e a costura crítica que o diretor faz com esse ingrediente está inserida nas relações interpessoais, em diálogos sobre tradição versus “novos tempos”, em conversas utilitárias sobre a “serventia de relíquias” para uma tribo de pessoas pobres, no meio das montanhas e, por fim, em uma porção de autocríticas que irão visitar os mais diferentes personagens, gerando reações bastante distintas entre eles. Em essência, A Múmia é um filme sobre as permanências e as mudanças durante um processo de entendimento de identidade. Ambientado em 1881, a história mostra como a morte de um patriarca, em um clã do Alto Egito, faz com que um segredo familiar antes plenamente aceito pela família se torne motivo de culpa, desprezo, fuga e morte. O roteiro trata a questão através do suspense, fazendo com que nos perguntemos o que acontecerá com o jovem Wannis (Ahmed Marei) se ele continuar negando o papel que deveria ter na venda criminosa dessas relíquias. A morte de um homem (o pai) é o bastante para oficializar a chegada de um novo momento para o clã e, nesse recorte que o filme nos traz, como reflexão filosófica também para toda a História do Egito.
Duas palavras se destacam no desenvolvimento: “mudança” e “identidade”. Se estivermos atentos às alegorias expostas ao longo de toda a projeção, veremos que o filme é um fluxo que mostra como o espaço físico e ideológico mudam, gerando novos tempos para todos. Um elemento natural que confirma isso e está presente do primeiro ao último minuto do filme é o vento. Indicador das mutações, daquilo que não é eterno, o vento é um verdadeiro personagem em A Múmia. É um mensageiro barulhento que fala uma língua que os personagens não entendem, mas que parece deixar todos em grande tensão, tornando algumas cenas amedrontadoras. Este vento parece ser o responsável por acompanhar as autoridades vindas do Cairo até às montanhas e despertar indiretamente na nova geração um senso de respeito e responsabilidade para com os artefatos até então negligenciados em seu valor histórico. É a partir do momento em que Wannis e o irmão se colocam contra a venda dessas relíquias que uma outra camada surge no filme, e o enredo passa também a discursar sobre identidade e sobre o conhecimento de si em uma terra que desconhece as suas próprias origens.
Assim que o filme começa, ouvimos a leitura de um trecho do Livro dos Mortos, uma coletânea de práticas místicas, cânticos e orações que tinham por objetivo auxiliar o morto em sua viagem para “o outro mundo”, afastando eventuais perigos que ele pudesse encontrar em sua viagem. O trecho lido na abertura – “conceda-me o meu nome na Grande Casa, e retorne o meu nome à memória no dia em que os anos serão contados” – pede aos deuses para que não deixem o morto sem saber quem ele é, sem o seu nome, sem a sua identidade. O autoconhecimento é o estágio final dessa nova Era que o vento traz. Nada mais sintomático do que termos uma morte logo no começo da fita e, com ela, a revelação de que a sobra das práticas do passado será apenas a resistência daqueles que lucravam com elas, daqueles que se recusam a aceitar a mudança, o despertar crítico e a resistência que o conhecimento trouxe para alguns. As práticas do passado morreram. Mas diante da tentativa de mudança, aparecem os praticantes da violência, aqueles que fazem de tudo para calar quem pretende denunciar um grande erro. Se aliarmos isso à bela fotografia de Abdel Aziz Fahmy e à cuidadosa direção de Salam, temos uma caminhada visualmente claustrofóbica e muitas vezes amedrontadora, até a revelação da verdade.
O cineasta não se entrega a excessos visuais aqui. A Múmia é um filme simples em sua mise-en-scène, mas seus planos, ângulos e sua montagem são muitíssimo elegantes e estão constantemente gerando tensão, deixando o público à espera de um novo ato de violência, de que as novidades trazidas pelo vento sejam massacradas pelos poderosos interessados em deixar tudo como está. Nesse ponto interpretativo, estamos diante de um filme com um grande leque de interpretações. Podemos analisá-lo por uma perspectiva histórico-cultural e discutir o roubo de tesouros arqueológicos que inúmeras potências cometeram em diversas nações ao redor do mundo; podemos analisá-lo por uma perspectiva alegórica ou simbólica e, a partir dos símbolos que escolhermos, aplicá-los à política, à sociedade e até mesmo ao mundo das ideias. Individual ou coletivamente; em pequenos grupos ou em instituições; unidos em pequenos clãs isolados ou parte do centro das grandes decisões da nação: cada um dos personagens e de suas relações no filme são marcados pelas mudanças trazidas pelo tempo. Isso significa que não é apenas pela adoção de determinadas linhas comportamentais, crenças e escolhas cotidianas que nascem as raízes de um grupo étnico. Há um número muito maior de coisas que lhes dão a sensação de fazer parte de um todo, de integrar um grupo muito maior de pessoas que compartilham algo de grande valor. Na arte, isso encontra uma de suas expressões mais poderosas.
As criações de uma geração e o legado artístico-cultural de uma Era são uma parte essencial da constante formação e transformação de um país, seja para seguir com o que foi criado, seja para negar, para lembrar-se ou analisar o porquê de determinadas criações. Os crimes representados em A Múmia não são apenas crimes de furto de material arqueológico. São crimes de furto de uma memória coletiva. São crimes que impedem uma nação inteira de se conhecer melhor, de não conseguir identificar o seu próprio nome nas trevas do presente, de não se reconhecer como povo. Entender o comportamento, o pensamento e os motivos da sociedade que produziu algo acaba criando caminhos mais fáceis para o surgimento de uma atitude crítica, de um pensamento solene diante das riquezas produzidas no passado e para a exibição de um símbolo que dá ao país um nome, que lhe reforça a identidade. E embora a ganância e a ignorância sejam os fatores centrais que movem os homens desse filme a cometerem o roubo, sabemos muito bem que as consequências desse tipo de memória despedaçada servem a propósitos mais sombrios. Povos com pouco ou nenhum entendimento de quem são podem facilmente cair nas mãos de líderes que tentam inventar uma nova forma de “ser um povo”. Já algumas forças exteriores procuram fazer dos sem-identidade um espelho consumidor da potência mais próxima. Em A Múmia, Chadi Abdel Salam reflete sobre os detalhes da formação de parte da identidade de um povo, e o filme exibe isso no figurino, na escolha do árabe clássico como idioma falado pelos personagens, na produção inteiramente nacional, na escolha das cores para a fotografia e na rica discussão antropológica que apresenta, mirando o peso da transformação que muda o indivíduo e o mundo à sua volta. O particular e o público, a memória pessoal e a coletiva, então, caminham juntas por um trecho da estrada. Surge, talvez pela primeira vez, uma consciência social que entende o valor da História e daquilo que ela produz.