Antes de mais nada, um pedido: esqueça toda essa desnecessária polêmica em torno de Lindinhas (Mignonnes, no original em francês), reflexo de duas grandes doenças do nosso tempo – o conservadorismo e a desinformação. A produção francesa, adquirida pela Netflix quando da sua estreia no Festival de Sundance este ano, é um comovente e assertivo conto sobre as vulnerabilidades da infância.
Tive a sorte de assistir a Lindinhas em 2020 na Berlinale em uma sessão lotada, e o frisson em torno do filme era completamente diferente do que se vê agora. Havia uma expectativa muito grande sobre este que é o primeiro longa-metragem dirigido pela Maïmouna Doucouré, realizadora franco-senegalesa cujo nome assina o celebradíssimo curta-metragem Maman(s), de 2015. Exibido em centenas de festivais pelo mundo e premiado nos mais importantes, o curta conta a história de Aida, uma garota de oito anos que vive com sua família senegalesa em Paris, e um dia é surpreendida com a chegada do seu pai, que volta do Senegal com uma segunda esposa e um bebê. Aida toma as dores da mãe, angustiada por ter de aceitar a presença de uma mulher mais jovem em sua casa. Por sua própria conta, a garota decide resolver a situação.
O que mais chamou atenção em Maman(s) à época do seu lançamento foi justamente o olhar infantil de Aida que conduz toda a narrativa. É através dela que se constrói o incômodo, a angústia, a tristeza e o estranhamento que invade a casa daquela família senegalesa que vive os costumes do seu país mesmo estando na França. É muito interessante como o curta coloca em perspectiva o olhar de uma criança que, nascida na França, aos poucos estranha o que supostamente lhe deveria ser familiar. Além disso, o filme tensiona a ideia de que as mulheres africanas se sentem confortáveis com o polimatrimônio – assunto que cada vez mais vem sendo explorado nos cinemas africanos, mobilizando muitos aspectos e opiniões que por muito tempo não foram trazidos para a superfície.
Toda essa introdução sobre Maman(s) é importante para entendermos de onde vem Lindinhas, que tem a mesma premissa: a partir do olhar de uma criança – dessa vez Amy, apelido de Aminata, 11 anos – Maïmouna coloca em perspectiva as angústias da infância e pré-adolescência a partir do conflito que Amy enfrenta dentro de casa com a sua família senegalesa com a qual ela constantemente perde identificação.
Vamos à sinopse: aborrecida com os preparativos do segundo casamento do pai, e angustiada com o sofrimento da mãe, que não está feliz com a chegada da segunda esposa, Amy encontra em um grupo de dança urbana da escola a distração que precisa para fugir dos conflitos familiares. Intitulado Mignonnes, o grupo é formado por quatro meninas populares e descoladas com o qual Amy tenta a todo custo se enturmar. Quando finalmente consegue, a garota vai até as últimas consequências para ganhar o concurso de dança para o qual as Mignonnes se inscreveram.
Talvez o primeiro grande êxito de Lindinhas esteja justamente neste roteiro bem costurado. Nada parece gratuito ou fora do lugar, e o modo como a história progride encaixa todos os elementos de forma harmônica: a apresentação de Amy em casa, na escola, entre as futuras amigas, com a mãe, com o irmão, com a tia – tudo se cadencia em uma economia temporal digna de uma roteirista habilidosa. O enredo evolui e se concentra na insistência de Amy em ser aceita pelas Mignonnes, conflito que não demora a se resolver porque a diretora precisa deste cenário para tratar do que lhe interessa.
Suspeito que o que lhe interessa é fazer justo o contrário do que a acusam. Lindinhas é uma crítica veemente à hiperssexualização de crianças em um contexto no qual a necessidade de pertencimento é atravessada por um universo baseado em aparências, redes sociais e superficialidades. Para tornar tudo ainda mais complexo, a protagonista é uma criança de origem africana, porém nascida já na diáspora francesa, e que se encontra em inevitáveis conflitos com questões culturais e identitárias nos diversos espaços que ocupa – notadamente sua casa e sua escola. Com uma condução fabulosa, Maïmouna traz todos esses conflitos para a mesa, fugindo de obviedades e armadilhas que poderiam fazer do seu filme um panfleto didático.
Digo isso porque, entre as meninas que fazem parte das Mignonnes está uma garota negra, francesa como todas elas, igualmente “malvada” no constante bullying dirigido a Amy, e consciente de ser negra em meio às amigas brancas. A naturalização dessa circunstância no roteiro diz muito sobre a maturidade do enredo de Lindinhas, e o que está em jogo no filme é uma espécie de diagnóstico da infância de mulheres, muito especificamente. Para isso, Maïmouna retrata o grupo sempre a partir de contrastes, mostrando-as, por um lado, bancando as adultas e, por outro, sendo genuinamente crianças da sua própria idade. Em um momento as vemos paquerando garotos e fingindo ser mais velhas, para logo depois acompanharmos seu desespero por medo de ficar doentes ao tocar em uma camisinha usada encontrada no chão. Não é tão simples como contrastar essas duas perspectivas, mas entendê-las como atravessamentos de uma experiência de infância e pré-adolescência que é muito mais complexa do que pode parecer em um primeiro momento.
Esses atravessamentos no filme são construídos especialmente quando nos damos conta que as imagens que Maïmouna faz das meninas dançando, com close-ups de suas bundas, pernas e bocas, existem com a marcada intenção de servir como contraste de suas versões genuinamente infantis. A cena em que Amy conversa com uma das amigas – enquanto estão deitadas na cama que virá a ser de seu pai com a nova esposa – sobre os problemas que têm com as famílias em casa é de uma honestidade comovente, e o fato de Amy trançar parte do seu cabelo com o da amiga é uma imagem tão simples como poderosa. A infância é solidão, e o que essas meninas fazem para achar seu lugar no mundo inspira mais compaixão que revolta ou julgamento.
Outro recurso usado com excelência é a música, e as cenas mais marcantes do filme são acompanhadas de uma trilha que confere toda a expressividade e sutileza das ações. Há um momento no qual as meninas são filmadas performando hiperssexualização e a música gira de uma levada pop dance para uma música sacra, enquanto vemos, dessa vez, não seus corpos, mas seus rostos de criança tentando ser adultas, tentando ser aceitas. Em outra cena, talvez a mais emblemática, acontece em plena apresentação no concurso de dança, momento esperado com tanta força por Amy, quando a música pop vai deixando lugar para uma tradicional música africana – provavelmente senegalesa – indicando o exato momento em que a garota parece entender o que está acontecendo. Não posso deixar de mencionar a incrível cena na qual Amy é submetida a um ritual religioso para “se purificar” e a câmera gira ao seu redor enquanto ela simula uma exorcização com os passos de sua coreografia para as Mignonnes. Absolutamente fabuloso.
É impossível não se comover com a história dessas meninas em um momento tão solitário da vida, retratado com tanto cuidado e objetividade. O fato de Amy ser a protagonista também faz de Lindinhas ainda mais marcante, porque estamos diante de uma garota franco-senegalesa que enfrenta o estranhamento tão típico dessas identidades atravessadas entre Oriente e Ocidente. O vestido que Amy deve vestir para o tão esperado casamento (que ninguém quer que aconteça) funciona como marcador dessa rejeição ao pai, às tradições, à família e, em última instância, marca também o embate entre o que significa “ser mulher” dentro daquela casa e fora dela. Não é à tôa que Amy vê seu vestido sangrando quando sua menstruação chega pela primeira vez.
O grande trunfo de Maïmouna é justamente seu esforço em questionar tanto a hiperssexualização de crianças como a rigidez da cultura muçulmana, a imposição de religião e costumes que, naquele contexto, parecem deslocados, especialmente no que tange às mulheres e como elas “devem” ser, falar, se vestir e se comportar. A figura do pai, que, ao contrário de Maman(s), aqui nunca aparece em cena, mas é onipresente em todas as situações, reforça o processo emancipador de Amy e acaba por representar a força maior que lhe oprime naquele contexto. Para a diretora, o caminho de emancipação não parece ser nunca o julgamento, mas talvez uma negociação entre todos esses cenários – e o esforço de Amy em encontrar um equilíbrio na angústia atravessa todo o filme, muitas vezes de forma bastante dolorosa, o que culmina na lindíssima cena final.
Seria um filme totalmente diferente se Amy fizesse sentido o tempo inteiro, se amássemos ou odiássemos em definitivo as personagens, se fosse fácil tomar um partido sobre o que aquelas cinco meninas deveriam ou não fazer – mas não se trata disso, em absoluto. No longo e tortuoso processo de se entender, de se encontrar, de pertencer ao mundo, seja lá o que esse mundo é, o que Lindinhas oferece é um pouco de compaixão pela imensa solidão da infância, especialmente das mulheres e especificamente daquelas que vivem atravessadas por diferentes contextos de identidade e pertencimento.
Uma curiosidade: a tia de Amy, que carrega em si tudo o que tem a ver com os costumes senegaleses com os quais a menina não se identifica mais, é interpretada pela atriz Thérèse Mbissine Diop (na foto, atuando em Lindinhas), mundialmente conhecida como Diouana, a protagonista do emblemático filme La Noire de…, do também senegalês Ousmane Sembène, produção de 1966.
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