Cinema, janelas e revoluções

por Gabriel Araújo

15 notas sobre “Falando sobre Árvores” (2019), “Você Morrerá aos 20” (2020) e a resistência sudanesa

1. O título de Você Morrerá aos 20 (2020) reside na literalidade. O longa sudanês dirigido por Amjad Abu Alala acompanha a vida de Muzamil, garoto cuja morte foi profetizada ainda quando era um bebê. Por conta disso, Sakina, sua mãe, sempre usa um hijab preto. Em determinada cena do filme, uma das anciãs da vila onde eles residem a confronta: “você está usando preto enquanto ele ainda vive”, ela afirma. Por sua vez, a anciã usa um traje branco, como explica, em luto ao próprio filho morto. Sem resposta, ela complementa: “Ou a tristeza se tornou um hábito?”

2.Falando sobre Árvores (2019), documentário de Suhaib Gasmelbari, assume a escuridão como início. Como relata Manar Al Hilo ao telefone, eles estão sem eletricidade há quatro dias. No improviso para fingir gravar uma cena, é o cinema quem cede a luz. Aqui, a alegoria pode funcionar como uma lupa para assistir ao próprio longa, visto o modo como os protagonistas enxergam o papel dos filmes e da experiência coletiva de exibição naquela realidade em frangalhos. Na cena em questão, os quatro amigos que o documentário registra, todos cineastas membros do Sudanese Film Group, ligam então um grande iluminador para que Ibrahim Shaddad possa interpretar sua personagem: a recriação da icônica cena final de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses (1950), clássico de Billy Wilder. A fala “estou pronta para o meu close-up”, ápice do delírio de Norma Desmond no filme original, aqui se atualiza no amor que essa equipe demonstra ao cinema e na confiança depositada à arte frente às opressões de um cotidiano que aos poucos se revela autoritário e desigual. 

3. Quem confia, persiste. 

4. Apesar de já ter decorado todo o Alcorão (nos dois estilos de leitura, única pessoa da região capaz de fazê-lo), Muzamil conhecerá o cinema apenas aos 19 anos, por intermédio de um improvável amigo, Sulaiman, que mora afastado da vila. Esse afastamento não está só na distância física. Longe da extrema fé religiosa que rege aquela existência rural, a casa de Sulaiman está recheada de música, cigarro, álcool e cinema. É lá que, com o intermédio de um pano branco, ele apresenta a Muzamil imagens gravadas em outro tempo. Do próprio Sudão do passado, mas também de outros países do continente africano. Os olhos do garoto brilham não só atentos, como felizes.

5. “Nem mesmo um tanque pode parar o amanhecer” é um dos cânticos entoados durante as recentes manifestações no Sudão contra o golpe que, em outubro de 2021, dissolveu o governo de transição estabelecido pela revolução em 2019. A revolução encerrou um regime autoritário que já durava três décadas e estabeleceu um comitê composto por civis e militares para conduzir o país à democracia. Em 25 de outubro do ano passado, um general, que fazia parte desse comitê, prendeu os integrantes civis do gabinete e decretou estado de emergência no país.

6. Christophe Ayad, jornalista francês, assim sumariza certa característica que ajuda a pensar o Sudão: um país “demasiado negro para ser árabe e demasiado árabe para ser africano”. A afirmação também resvala de uma forma ou outra nos filmes mencionados na medida em que complexifica as expectativas criadas em torno do continente mãe. Encravado no norte africano e separado de Meca, a cidade sagrada do Islão, apenas pelo Mar Vermelho, o país acumula as contradições de uma história onde colonialismo, tirania e devoção caminham juntos, seja em paralelo, seja em concorrência. Olhar para o cinema produzido neste contexto é também entender a amplitude e a diversidade das narrativas negras que vêm de África e da diáspora africana.

7. Em Falando sobre Árvores, Ibrahim Shadad, Manar Al Hilo, Suleiman Mohamed Ibrahim e Altayeb Mahdi tentam, após anos de exílio, reabrir uma sala de exibição a fim de “espalhar a arte do cinema pelo Sudão” – “morta”, como dizem, como uma das ações do governo de 30 anos do ditador Omar al-Bashir. O longa, portanto, assim como Você Morrerá aos 20 anos, se transforma numa narrativa sobre a espera. Enquanto em Você Morrerá aos 20 essa espera se dá pela morte, que está sempre ali à espreita, na iminência, em Falando sobre Árvores essa expectativa se dá pela ressurreição, para fazer com que o cinema resista ao autoritarismo daquele governo e conquiste, novamente, um público cativo. Duas cenas de ambos os filmes registram essa paciência com precisão. Em Falando sobre Árvores, é simbólico o momento em que Ibrahim Shadad apresenta a sala de cinema que o grupo tenta reabrir a um camelo. Ele, conduzindo o animal com uma corda que liga os dois, conta as particularidades do espaço e narra, com calma, as memórias de um tempo onde as exibições eram lotadas. Em Você Morrerá aos 20 Muzamil recorrentemente deita sua cabeça no peito de outros personagens, certificando as batidas do coração dessas pessoas como que para lembrar-se da tangibilidade da vida, enquanto aguarda o fim de sua própria. É certo que as esperas se frustrarão nos dois filmes, mas aquilo que ocorre durante esses momentos também representa um dado expressivo daquele contexto.

8. Você Morrerá aos 20 é dedicado às vítimas da revolução sudanesa.

 

O que precipitou a morte do cinema, esse herói morto? Esperamos sua ressurreição.

Você disse e repetiu: “o herói morto”. Pode-se morrer de morte natural ou assassinado por um traidor. O cinema não morreu de morte natural. Ele morreu subitamente. Mas a morte súbita de um herói é obra de um traidor. Para encontrar a causa, procurem o traidor. O problema é esse.

9. (Diálogo entre um jornalista e Ibrahim Shadad em Falando sobre Árvores)

10. Não é que a religião não esteja presente em Falando sobre Árvores – até porque essa percepção é falsa. De forma significativa, Suhaib Gasmelbari escolhe registrá-la de longe, tornando-a nítida por meio do som, não da imagem, assim reforçando o quanto ela está presente naquela região sem a necessidade de materializá-la. Os altos cânticos durante a exibição de Tempos Modernos (1936), de Charlie Chaplin, exemplificam bem essa ideia. A religião, por outro lado, é o cerne e o fio condutor de Você Morrerá aos 20 Está tanto nas referências visuais que o filme presta a outras obras de arte – a reprodução de Pietá, por exemplo, com a imagem do filho negro morto no colo da mãe, que lamenta – como no asfixiamento das perspectivas de vida daqueles personagens. Muzamil é considerado “filho da morte” porque as pessoas daquele meio creem que a maldição é inevitável, fato que conduz toda e qualquer possibilidade de escolha daquela família. O garoto é obrigado a encontrar no próprio islamismo uma espécie de saída para seu destino. Seu pai, sem conseguir lidar com a profecia, decide abandonar aquela realidade durante quase toda a vida do filho. O fardo cai nas costas da mãe, que, em constante luto, antecipa o fim riscando as paredes da casa.

11. E é justamente curioso como ambos os filmes apostam (e confiam) no cinema como uma possível fresta para além dos enquadramentos propostos pela religião e pelo autoritarismo. Não é à toa que a projeção em Falando sobre Árvores é proibida, no final das contas, assim como não é leviano a escolha de registrar o pano branco que emoldura a casa do bon-vivant Sulaiman como uma janela que se abre para o mundo que ele outrora havia registrado. “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar”, Drummond já dizia.

12. Por isso me parece corajosa – e um tanto pesarosa – a escolha de Amjad Abu Alala em terminar Você Morrerá aos 20 com uma fuga, após a não-morte de Muzamil. Mas evito interpretar essa decisão como impossibilidade, como uma simples debandada à realidade daquela vila e a tudo que ela engendra e engendrou na vida do protagonista. Fuga também é construção, afinal. Fico com as palavras de Dénètem Touam Bona quando o filósofo afropeu descreve, em Cosmopoéticas do refúgio, o valor da secessão marron: “ela é a produção de um mundo, criação de um fora com valor de refúgio e de utopia concreta para todos que ainda permanecem cativos”. Naquele momento, a fuga pode ser o único caminho possível. Mas nela reside a esperança da mudança em tempos vindouros.

13. Fomentar esperança é também respeitar esperas.

14. Bertold Brecht escreve: What kind of times are they, when / A talk about trees is almost a crime / Because it implies silence about so many horrors? (Que tempos são esses, em que / Falar de árvores é quase um crime / Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?)

15. O Sudão acumula 79 mortos e mais de 2 mil feridos desde o golpe de 25 de outubro de 2021. De acordo com o Comitê Central de Médicos Sudaneses, fonte entrevistada para matéria do The New York Times, a maioria das pessoas mortas foram baleadas na cabeça, no peito e no pescoço durante as manifestações pela democracia. Ainda assim, os sudaneses tocam tambores e cantam.