Filme Zinder (2021), de Aïcha Macky
por Egberto Santana
Estamos em Kara-Kara, distrito de Zinder, título do filme de Aïcha Macky. O letreiro inicial do documentário nos contextualiza: um lar de leprosos e marginalizados. “Seus filhos formaram gangues conhecidas como ’Palais’, temidas pela população”. A diretora, ex-moradora da região, diz que as gangues concordaram em abrir o mundo deles para ela, para que assim a história deles pudesse ser contada. O letreiro some e o corte dá lugar a uma cena de dois homens em uma moto com uma grande bandeira branca e o símbolo da suástica nazista desenhada nela.
Em seguida temos uma sequência em que diferentes planos retratam homens negros se exercitando, levantando ferro e realizando flexões. A câmera se movimenta pelas costas, pelos rostos suados e do peitoral para cima. Junto ao som da respiração dos homens e as conversas de desconhecidos ao redor do espaço, um homem explica a origem do nome do QG – onde o grupo se reúne para treinar, feito completamente de palha, bambu e estruturas de ferro para sustentar os equipamentos -, a partir de uma voz calma em voz off que acompanha as imagens: “Hitler”, “uma figura americana muito guerreira”. A justificativa continua, mencionando a semelhança do grupo com Hitler, pois são como ele, não possuem medo.
O choque inicial causado pelo contraste entre homens negros homenageando o nome de um líder supremacista branco colabora para tensionar o primeiro encontro entre espectador e obra. A ideia desperta a curiosidade: mas eles sabem do que exatamente se trata esse nome? A dúvida logo desaparece à medida em que nos aproximamos desse mundo, revelando-se “apenas” um acessório provocativo da montagem inicial.
O que vai fazer com que esta pergunta abandone o espectador ao longo da narrativa é justamente uma exploração fílmica a respeito da vivência dos moradores daquela região. São as condições de trabalho e de sobrevivência apresentadas dos três personagens escolhidos como entrevistados: Bawo, um mototaxista ex-membro de gangues, Ramsess, um contrabandista de gasolina e Sinyia Boy, líder da gangue Hitler. Esse último também enfrenta uma jornada pessoal para prover o dinheiro necessário para os exames de sua esposa, que está grávida.
Zinder se alterna entre dois momentos: a entrevista de cabeça falante (talking heads) e a câmera onipresente pelos espaços de vivência dos personagens. Ao invés de contextualizar pela fala, Macky escolhe trafegar com sua câmera pela região e pelos corpos dos personagens. O trabalho está presente nas imagens, enquanto os sonhos e as memórias de violência preenchem os diálogos, quase todos vindos dos personagens, com poucas intervenções da diretora. Há também uma aproximação dessas memórias a partir de uma passagem da câmera pelas cicatrizes, quase encostando nos corpos registrados pela lente.
Cicatrizes que carregam a memória de estupros compartilhados e brigas de rua relatados para a diretora, por meio de uma conversa corpo a corpo entre entrevistado e entrevistadora, diante da câmera, o que nos provoca o medo ou a impressão de que estamos de frente com homens realmente sem temor.
Ao mesmo tempo, o temor pelo que apresentam enquanto conteúdo, é quebrado um pouco pela maneira como os personagens são mostrados: corpo a corpo com a diretora, a partir de respostas muito calmas, sérias, como observadores de longe que sabem do erro e da condição em que estavam quando cometeram os delitos. Essa posição conflituosa também é reforçada pela visão que temos do plano. Ainda que não a enxergamos, ouvimos a voz da diretora, cutucando por mais informações, enquanto na imagem, o entrevistado olha até a direção do som e continua comentando, sem mudar a feição.
Este contraste, do violento e imoral com a rigidez e a seriedade da fala, vai tomando conta do filme como um todo. O trajeto da câmera pelas cicatrizes, a rigidez com que a atenção é dada para o relato e a livre expressão dos membros da gangue cria uma leveza que acompanha nossa aproximação com Kara-Kara.
Esta sensação contrastante perpassa o trabalho e o cotidiano. Assistimos rodas de amigos fumando narguilé enquanto comentam um vídeo de uma pessoa apedrejada pelo Boko Haram, grupo fundamentalista islâmico concentrado na Nigéria. A experiência do grupo não passa nem pela extrema raiva sobre o ato nem pela compaixão com a vida. Assistem como só mais um vídeo. São pessoas que nasceram e vivem naquela região. Provavelmente irão morrer também. E também pensam sobre tudo isso, seja entre amigos ou disparado por um debate numa rádio. Os personagens possuem uma consciência ativa dentro do organismo social que vivem. É nessa força que reside o coração do filme, no ato de registrar um ar de complexidades de fora do olhar do Estado, de situações extremas ou de olhares únicos – onde Hitler podeser sim só o nome de um QG, pois é o que menos importa para a sobrevivência de quem mora ali.
Egberto Santana é jornalista formado pela Unesp, crítico e redator. Possui colaborações críticas no Persona Unesp, Plano Aberto, entre outros sites voltados para textos de laboratórios de crítica como o Indeterminações, Mostra cinema do presente, FestcurtasBH e Oficina de crítica do festival Primeiro Plano.É repórter pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias.
Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2022 da Mostra de Cinemas Africanos em São Paulo, ministrado pela crítica de cinema Juliana Costa.