Memórias e afetos em “From a Whisper”

por Lucas Ravazzano

TÍTULO
From a Whisper
DIREÇÃO
Wanuri Kahiu
PAÍS
Quênia
ANO
2009

Eu conheci o trabalho da diretora queniana Wanuri Kahiu em Rafiki (2018), me encantando com o calor humano e a visualidade singular com os quais a realizadora contou sua história de amor entre duas jovens em um país que criminaliza relações homoafetivas. Assim, fiquei curioso por conferir outros trabalhos da diretora e cheguei a From a Whisper, primeiro longa-metragem de Kahiu lançado em 2008. A produção já trazia a ideia da importância do afeto e compreensão em lidar com os problemas de seu país.

A trama parte da tragédia real do bombardeio da embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi, capital do Quênia, em 1998, que deixou cerca de duzentos mortos. O filme, no entanto, não fala sobre os atentados em si, mas das vidas dos sobreviventes dez anos depois da tragédia. Especificamente a trama foca em Tamani (Corrine Onyango), uma artista rebelde que espalha pinturas de coração ao redor da área em que os atentados ocorreram, e Abu (Ken Ambani), um oficial de inteligência que é fascinado pelas pinturas de Tamani. Eventualmente os dois se encontram e isso traz a tona memórias do passado em que descobrimos como os dois estão pessoalmente conectados aos atentados.

Assim como a trama de famílias rivais de Rafiki, há algo de familiar e prototípico nos personagens de From a Whisper. Abu é o agente da lei traumatizado por acreditar ter fracassado no passado, enquanto que Tamani é a artista incompreendida pela família. O que eleva a trama e os personagens, no entanto, é como o texto e a direção de Kahiu lidam com eles.

É curioso como o filme transita entre o passado e presente das personagens sem nenhum indício visual dessa transição de temporalidade. Ao invés das estratégias típicas de bordas brancas ou iluminação diferenciada para os flashbacks, aqui não há nada que ilustre imediatamente essas transições. É uma escolha que parece proposital para mostrar como o passado ainda é presente para Tamani e Abu. Apesar de passados dez anos, os dois personagens ainda vivem nos eventos de 1998. Isso fica bastante evidente em um flashback com Tamani criança e a maneira que a montagem alterna entre o olhar da versão infantil da personagem com sua versão no presente faz parecer que as duas Tamani estão trocando olhares. 

Isso denota a dualidade da personagem. De um lado, Tamani é uma mulher que tenta reconstruir a vida depois de perder a mãe, que acredita ter desaparecido nos atentados. Por outro ela ainda é a mesma menina que pinta corações com mensagens cifradas de amor, carregando consigo um amálgama de passado e presente. De início a complicada relação entre Tamani e o pai remete ao clichê da família conservadora que não entende as aspirações da filha, mas conforme a trama caminha o pai de Tamani vai recebendo mais camadas e eventualmente percebemos uma motivação consistente para que ele tenha mentido sobre o que ocorreu com mãe de Tamani. 

É difícil não notar também a resistência de Tamani em ir para os Estados Unidos como o pai dela deseja. Enquanto muitas produções de nações em desenvolvimento (seja na América Latina ou na África) costumam tratar a imigração para países do norte global como uma espécie de tábua de salvação, reproduzindo uma visão colonizada, aqui Tamani não vê qualquer benefício em migrar. Ao invés disso, a possibilidade de deixar seu país é tratada como uma ruptura brutal de deixar tudo que se ama em prol de um lugar que talvez não lhe dê uma existência necessariamente melhor.

A Nairóbi filmada por Kahiu também rejeita os clichês hollywoodianos de retratar as paisagens urbanas africanas como lugares simplesmente miseráveis, a exemplo do retrato feito em produções como O Jardineiro Fiel (2005), que parece reduzir Nairóbi à favela Kibera. Aqui a diretora recorre a amplos planos aéreos da cidade para mostrar uma paisagem urbana que nos apresenta a uma cidade que não é muito diferente de outras metrópoles urbanas. Claro, a narrativa ainda mostra as desigualdades sociais presentes nesse espaço, mas nunca reduz seus personagens e ambientes à essa condição de pobreza, jamais descambando para a “pornomiséria” que acomete muitos retratos de países africanos no cinemas.

O arco narrativo de Abu, por sua vez, pinta um retrato complexo do islamismo de como grupos radicais recrutam pessoas comuns para se tornar homens-bomba. Se a conexão de Tamani com os atentados era a mãe, a de Abu é o melhor amigo, Fareed (Abubakar Mwenda), que se torna um dos homens-bomba a explodir a embaixada. 

Apesar de se radicalizar, Fareed ainda demonstra afeto e respeito por Abu, inclusive indo à casa dele para orar antes do atentado. A conversa entre Abu e Fareed durante essa última oração serve para desmontar a retórica fundamentalista, conforme Abu, também um muçulmano devoto, aponta as contradições do discurso radical de Fareed, que apenas se torna mais agressivo ao ser confrontado pelo amigo. A amizade consegue humanizar Fareed sem suavizar a gravidade de seus atos ao mesmo tempo em que evita reduzir todo o islamismo a um radicalismo raivoso, usando Abu para mostrar como esses grupos terroristas não representam todo o islã.

O clímax do filme retorna à cena inicial para revelar que a criança que vimos desenhando no carro era Tamani e o motorista de caminhão para o qual ela acena era Fareed, fechando o ciclo na conexão entre os principais personagens da trama. O momento em que o pai de Tamani caminha pelas ruas após a explosão da bomba retrata o caos dos atentados, transmitindo a confusão e angústia daqueles pegos no raio da detonação. O final, quando Tamani e o pai caminham pelo memorial dos atentados que, graças a Abu, foi decorado com as pinturas de Tamani serve como uma metáfora da arte enquanto meio me lidar com tragédias, do poder catártico da arte. É esse poder que atraiu Abu para as pinturas de Tamani.

O contraste do vermelho dos corações pintados por Tamani com a paisagem dominada por concreto cinzento do memorial transforma em belo um espaço frio, conferindo a ele outros significados. A ideia de que a arte, a cor e o afeto são um meio de se elevar diante de traumas e dificuldades é algo que vai acompanhar Kahiu em Rafiki, seu longa posterior, no qual ela trabalha esses elementos de maneira ainda mais pujante.

O filme “From a Whisper” está disponível gratuitamente no canal de Wanuri Kahiu no Vimeo, em versão original com legendas em inglês. Confira: