Sobre pássaros e gaiolas

por Morgana Gama

Filme Adeus, Julia (2023), de Mohamed Kordofani

por Morgana Gama

Pássaros têm como parte de sua natureza a capacidade e o desejo de voar. Suas asas permitem isso. No entanto, quando em gaiolas, se acostumam a voar dentro de um espaço limitado, têm acesso fácil ao alimento e a ilusão de liberdade, apesar de estarem presos. Como as gaiolas estão para os pássaros, assim estão as instituições sociais (leis, partidos, ideologias, religiões etc.) para as pessoas. Uma metáfora que talvez nos ajude a compreender o drama sudanês Adeus, Julia (2023), dirigido por Mohamed Kordofani. Mais do que tratar sobre os conflitos territoriais do Sudão, o filme é um convite para refletir sobre o medo e o desejo de liberdade.

De um lado está Mona (Eiman Yousif), mulher que segue os costumes da cultura árabe, entre eles o de usar o véu em determinados ambientes e que vive um casamento baseado no medo em decepcionar o marido e de não lhe dar filhos. Como fruto do acaso, Mona acaba se envolvendo em um incidente que culmina com a morte de um homem do sul (“sulino”), que é parte de uma comunidade constantemente hostilizada pelos árabes do norte. É a partir desse acontecimento trágico que Mona, movida pelo sentimento de culpa, sai em busca da viúva e encontra Júlia (Siran Riak). Diante do desaparecimento do marido, esta aceita trabalhar como empregada na casa de Mona para sobreviver com seu único filho.

Aos poucos, surgem da convivência e amizade entre essas duas mulheres os seus maiores sonhos e medos. Mona sonha em cantar novamente enquanto faz aquecimentos vocais no carro, mas tem medo de não corresponder ao desejo do marido em ter filhos. Júlia sonha em estudar e morar fora do país, mas teme pelo futuro do seu filho em meio a uma sociedade dividida por conflitos territoriais, étnicos e religiosos. É assim que, mesmo sob a sombra dos seus temores, elas encorajam uma à outra a assumir o risco de mudar para ser livre.

A forma como a trama antecipa as mudanças das personagens também merece atenção no filme. Apesar das diferenças entre essas duas mulheres, à medida em que a narrativa avança, a encenação permite perceber uma crescente aproximação entre elas com pequenas mudanças na composição dos enquadramentos, diminuindo a tensão gerada pelo revezamento entre plano e contraplano e ampliando os momentos em que as duas personagens dividem um mesmo quadro. Por vezes, o filme utiliza inversões sutis de hierarquia, como nas ocasiões em que Mona deixa o status de patroa e trança os cabelos de Júlia ou quando Mona se confessa para o marido e os dois, embora sentados em lugares distintos, aparecem aproximados dentro de um mesmo plano como se estivessem um de frente para o outro.

Essas mudanças das personagens também podem ser vistas conforme elas concedem o direito à liberdade. É o momento em que Mona solta os pássaros que o marido lhe dera em uma gaiola. Ou quando Júlia renuncia ao direito de vingança contra aqueles que destruíram sua casa ou mataram seu marido. É entender que os filhos podem ter rumos diferentes de seus pais. Talvez essa seja a razão pela qual Adeus, Júlia vai além do conflito que culminou com a separação do Sudão em norte e sul, em dezembro de 2010. Não se trata de diferenças daquilo que se deseja em comum, mas sobre a necessidade de se enxergar pequenas individualidades em meio às grandes divergências territoriais e políticas e o direito à liberdade como uma condição fundamental à própria existência.

Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2024 da Mostra de Cinemas Africanos em Salvador, ministrado pelo crítico de cinema Rafael Carvalho.