Notas sobre Eu vou mudar a cozinha, de Onjaki (2022)
por Davina Marques
Estamos imersos em um universo de graves acontecimentos. Há lutas, neste exato momento, mobilizando gentes envolvidas com armamentos leves, pesados, levando pessoas a enfrentarem-se, muitas vezes sem saber por quê.
As guerras ceifam vidas e sonhos. Brutalizam-nos. Deixam marcas que não se apagam, que ficam, como as cinzas em um cinzeiro. Quem luta e volta pra casa não é mais o mesmo, não é mais a mesma, dadas as violências que enfrentou. Quem fica a esperar a volta imagina a agonia de quem partiu, espera entre sentimentos confusos um retorno a algo que jamais retornará – uma vida anterior. Quando se tem que encarar a volta aniquilada ou a morte, sobra simplesmente a dor, entre tantos vestígios. A luta nos entra casa a dentro, cotidianamente, mesmo depois de declarado o seu final.
O cinema é uma arte que, com frequência, traz a guerra como tema, a nos dar a pensar sobre as lutas sob inúmeros aspectos. Assim experimentamos o filme “Eu vou mudar a cozinha” (2022), de Onjaki, “dedicado a todas as pessoas que sofreram com a guerra em Angola”. Uma criação desse artista angolano inspirada por uma história de uma mulher e seus armários, que lhe foi contada por Xana, informam-nos os créditos.
Nesse curta, o realizador, poeta que é, faz poesia com imagens e sons, compondo com o trabalho de direção de arte de Indira Mateta e da direção de fotografia de Ery Claver. A escolha pelo preto e branco já nos coloca na relação presente-passado-futuro de imediato. Há deslocamentos de foco, vapores que sobem de panelas na cozinha, a beleza da dança da fumaça do cigarro… Os jogos de tons de claro e escuro dão o tom da melancolia da personagem. Mesmo a brincadeira de correr com as filhas em casa parece descolada da realidade do momento atual da personagem.
Chove. Um violão, na cadência da chuva, passeia conosco pelas cenas da casa, pontuando o que nos conta a personagem feminina. Reconhecemos uma mulher, passos de crianças… Reconhecemos espaços e objetos: a sala, a sala de jantar, a cozinha, o cinzeiro, o cigarro… “Os sentimentos são como as cinzas, rumores de laços e prazeres acontecidos.” – ela nos diz.
Há imagens de pés descalços cujo andar não se ouve. Indicam como nos acompanham as pessoas que amamos, o tempo todo. Imagens em movimento nos lembram as presenças-ausências a nos atravessarem constantemente. “Há um tremendo silêncio n[a] casa.”
Renata Torres interpreta, com forte presença, uma mulher que conta sua história a partir da cozinha, dos aromas, das consistências de ingredientes e de suas receitas. “Poesia cozinhada pelas minhas mãos.” Observando seu entorno, ela conjetura sobre os armários, as cinzas, o cinzeiro, suas sandálias. “Junto ao corpo tenho as sandálias. Junto ao chão, arejadas e moldáveis. As sandálias não são como os homens.”
Fala de si e de suas relações mais íntimas: o pai, o marido, as filhas. A voz grave do pai em off está sempre a lhe lembrar o lugar da mulher e as expectativas de como as coisas deveriam ser em casa e na família – responsabilidades femininas. O marido, um piloto de avião na guerra, com quem antes dividia “cigarros e momentos”, foi arrancando-lhe “a ternura do lar”. “Eu era a esposa de um homem tranquilo, que ria e chorava.” – ela nos diz.
Envolvidos por uma dicção clara, vamos sendo levados por essa voz que pensa-fala e por um olhar que nos encara algumas vezes durante a narrativa. Um português que conhecemos-desconhecemos, um falar angolano do português, da língua que colonizou também as nossas terras. E todo esse narrar é pontuado pela trilha sonora de Filipe Raposo, com notas de instrumentos aveludados que entremeiam a chuva que cai, constante. A trovoada anuncia um momento de tensão, ouve-se um rádio, bombas caem por perto. O de fora cai sobre nós, mesmo em lembranças.
Agora sabemos ser uma viúva da guerra civil angolana quem nos fala. Entre o desejo anunciado – “apetece-me mudar de pele” –, e aquilo que efetivamente ela pode fazer – mudar de roupa e de penteado –, anuncia-se a decisão tomada: vou mudar a cozinha.
A sensação que, como um fio durante toda a narrativa, parece indicar que algo trágico vai acontecer, na verdade, são restos daquilo que, de fato, acontecera antes, durante o período da guerra. Enfrentamentos. Violências dentro e fora de casa. Nesse sentido, o curta é também uma homenagem à força de quem resiste, em especial, a das mulheres.
Sobre-viventes, para usar uma palavra de Cidinha da Silva, mudamos o visual e seguimos, carregados de vestígios, na poeticidade das sombras, das luzes, das vozes de quem nos acompanha. E isso tudo, obviamente, como aquelas estrelas visíveis apenas para quem puder ver.
Davina Marques é graduada em Letras (Português e Inglês) e Pedagogia, Mestra em Educação (UNICAMP) e Doutora em Letras (USP), com Pós-doutorado em Educação (UNICAMP). É docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, no Câmpus Hortolândia. Integra o GENAM – Grupo de Pesquisa em Literatura, Narrativa e Medicina (USP) e o Humor Aquoso, do OLHO – Laboratório de Estudos Audiovisuais (UNICAMP), entre outros grupos com que colabora. Contato: davina.marques@ifsp.edu.br.
Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2022 da Mostra de Cinemas Africanos em São Paulo, ministrado pela crítica de cinema Juliana Costa.