Filme Banel & Adama (2023), de Ramata-Toulaye Sy
por Renato Damasceno
Na filmografia, no teatro e na literatura mundiais, tratando-se de histórias de amor, não constitui uma raridade a utilização dos prenomes do casal romântico na titulação das obras. Romeu e Julieta (1968, 1996, 2013…), Tristão e Isolda (2006), Henry e June (1990), Eduardo e Mônica (2020) são alguns exemplos; todas narrativas com as suas singularidades, mas que, desde o título, se ajustam ao modelo patriarcal, pressupondo que, na hierarquia interna do par, o homem precede a mulher, uma tradição que parece vigorar desde Adão e Eva.
O título Banel & Adama (2023), primeiro longa-metragem da jovem diretora francesa Ramata-Toulaye Sy, descendente de senegaleses, por conta da falta de familiaridade com os nomes próprios em Senegal, país onde a trama se desenrola, de imediato, pode sugerir que o rótulo da obra se adequa ao formato convencional. Mas a própria diretora, entrevistada na abertura da Mostra de Cinemas Africanos em Salvador (2024) e antes da exibição da película, afirmou que a sua realização, inspirada na dramaturgia shakespeariana, particularmente Romeu e Julieta e Lady Macbeth, apresenta uma protagonista complexa. Uma dica para, logo nas primeiras cenas, ser feita a dedução de que ela se referia a Banel, aquela cujo nome encabeça a etiqueta.
Diante de uma imagem amarela alaranjada difusa e intensa, como o sol, ouve-se uma voz feminina que discorre brevemente sobre o amor que, em seguida, é demonstrado em cenas que podem ser consideradas românticas dentro dos limites impostos aos seguidores do Islã – sem beijos ou outras intimidades físicas –, especialmente numa remota aldeia no norte do Senegal, onde sucedem os acontecimentos.
Nos momentos iniciais, observa-se a união do jovem casal, num cenário bucólico, colorido, verdejante, iluminado, em conversas, no idioma local fulani, que remetem às imagens de uma lenda ancestral, em que, num belo rio, se encontra um pescador, amigo de sereias que teriam se vingado do povoado após uma falsa acusação, escasseando a água e a pesca, antes abundantes. A narrativa não deixa clara a conexão entre a lenda e os fatos que estão por vir, mas, de forma geral, os planos abertos ilustrativos permitem antecipar que a fotografia será um aspecto valorizado no filme.
Enquanto estão sozinhos, descontraídos ou trabalhando juntos na realização do sonho de desenterrar uma casa soterrada em um local de aparência desértica, sonhado futuro lar, tem-se a ideia de um típico casal romântico em condição paradisíaca, apesar da já evidente precariedade material no figurino e na aridez daquele espaço físico.
A história ganha a prenunciada complexidade quando outros personagens surgem, fatos anteriores e conflitos emergem em cenas, muitas vezes caracterizadas pelo silêncio humano, rompido por diálogos curtos ou sons diegéticos da natureza e uma suave trilha sonora.
Nesses momentos silenciosos, ganham densidade os recursos de comunicação não-verbal do elenco, especialmente os olhares marcantes, ponto alto da performance dos atores, com destaque para a protagonista.
Vê-se que a mãe de Adama impõe a Banel a lavagem das suas roupas em detrimento do propósito de fazer as escavações relativas à casa soterrada, cobra-lhe um neto (indesejado pela nora), ameaça-a que o filho recorrerá a uma futura segunda esposa. Além disso, em observância às tradições, deseja que, em virtude da morte do seu outro filho, Yero, ex-marido de Banel, Adama, seguindo a linhagem, assuma a liderança da aldeia, algo que ele, de início, totalmente engajado na edificação do devaneio amoroso, rejeita.
Além daquela pressão exercida pela mãe do companheiro, outras, quase sempre ancoradas em fundamento religioso, são exercidas sobre o casal, especificamente em relação a Banel (acusada de influenciar o marido); por uma amiga, antes interessada em Adama, que afirma veementemente que ele é igual a todos os homens; e pelo irmão de Banel, que identifica nela a propensão para agir pelo coração e não pela razão, como ele, negligenciando, assim, no cumprimento das obrigações de uma mulher, ter e cuidar dos filhos, cozinhar, lavar, capinar, o que, em determinado momento, algumas fazem, gerando uma bela sinfonia com as suas ferramentas de trabalho.
A atmosfera social desfavorável ao casal, especialmente para Banel, que simboliza a idealização do amor romântico com a frequente manipulação contemplativa de uma desgastada folha onde estão escritos os nomes do par, como no título da obra, é intensificada pelo cenário de pobreza, escassez, aridez do solo e ausência de chuvas. Isso gera mortes de pessoas e animais, fonte de alimentação, ocasionando, inclusive, o êxodo de membros da aldeia, contexto que remete a Vidas Secas, livro de Graciliano Ramos e às imagens descoloridas do filme de Nelson Pereira dos Santos (1963), e à região Nordeste do Brasil e outras atualmente fortemente acometidas pelas atuais emergências climáticas. Tais acontecimentos assinalam uma acentuada mudança nas cores do filme em relação ao seu início, com tons desprovidos de vida, atenuados apenas pelo pouco variado vestuário dos personagens, de cores marcantes.
Verificando Adama em dúvida, totalmente voltado às atividades de pastoreio, desanimado, preso às expectativas materna e sociais e às crenças religiosas punitivas internalizadas (o que talvez remeta à lenda inicialmente apresentada), Banel, em diferentes momentos, demonstra a sua solidão, raiva, frustração, tristeza, o seu desespero ou, possivelmente, também a sua culpa, considerando a possibilidade dela ter contribuído diretamente para a morte do seu ex-marido, oportunizando uma “segunda chance” para que o seu amor se concretizasse sem necessidade de recorrer a uma cogitada fuga.
As exasperações de Banel podem ser deduzidas a partir do uso recorrente de uma badoque para atingir um alvo imaginário, um pássaro e um réptil, em supostas alucinações em que se ouvem reverberações vocais, no repentino mergulho na escuridão total, que serve de exemplo para o bonito jogo de luzes e sombras nas cenas noturnas, bem como no incômodo ao ser fitada por um menino que teria certo poder místico.
As belas cenas da assustadora e inesperada revoada de pássaros sobre a cabeça de Banel e do longo abraço de Adama numa grande árvore ilustram, de certa forma, o sofrimento isolado do casal, acentuado quando o último decide tornar-se líder da aldeia, submetendo-se às expectativas sociais e, por certo, às tradições religiosas, marcadas no filme pela frequente alusão a Alá.
Nesse cenário, durante uma forte tempestade de areia, vem à tona não uma, mas duas casas, antes soterradas e escavadas no início pelo casal, assim como a trama fez emergir as complexidades de natureza ambiental, social, histórica, religiosa, econômica e psicológica a serem enfrentadas pelos indivíduos na realização dos seus mais simplórios sonhos matrimoniais. As casas vêm à tona, uma criança nasce, talvez um símbolo de esperança, mas o mundo de Banel desmorona.
Por fim, como na configuração circular do filme, volta-se ao início. A inversão da ordem dos nomes no título da obra implica um gesto, uma pretensão de mudança. Mas, como sugere a voz da protagonista, de volta à luz amarela, alaranjada, intensa e difusa do princípio, o resgate do honroso passado ancestral, de reis e rainhas senegaleses, de liberdade, de poder, pressupõe um longo enfrentamento às forças do mal presentes em estruturas fortemente consolidadas, como o patriarcado, o fundamentalismo religioso e a exploração capitalista.
Requer-se uma nova ordem nominal e uma nova ordem mundial.
Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2024 da Mostra de Cinemas Africanos em Salvador, ministrado pelo crítico de cinema Rafael Carvalho.