O branco cinema negro da África do Sul

por Morgana Gama

Filme Banido (2024), de Naledi Bogacwi

por Morgana Gama 

Você já imaginou uma versão de “James Bond” no contexto dos cinemas africanos? Pois é, esse filme existiu e seu nome é Joe Bullet, produção lançada em 1973 na África do Sul, em pleno regime do apartheid. A existência de um filme de ação feito nesse contexto chama a atenção pela combinação de dois fatores, em princípio paradoxais: uma obra dirigida por um diretor branco com um elenco majoritariamente de pessoas negras protagonizando histórias que questionavam o próprio regime segregacionista a que elas estavam sujeitas. Não demorou muito para que o conteúdo do filme fosse entendido como uma possível ameaça ao regime. Financiado com “B-Scheme” (Esquema B, em tradução livre), subsídio do governo sul-africano voltado para o incentivo de produções cinematográficas que pudessem entreter – e porque não dizer, alienar – o público negro africano, logo após a sua sessão de estreia em um cinema de Soweto, o filme teve a sua circulação banida no país. Afinal, a história até poderia ser ficcional, mas o protagonismo do elenco apontava de forma muito concreta para o fim do apartheid

É a partir da redescoberta desse filme que a diretora sul-africana Naledi Bogacwi decide então fazer o documentário Banido (2024), uma espécie de processo investigativo por trás do desaparecimento do filme Joe Bullet. Busca, por meio de uma série de entrevistas, conhecer as pessoas que atuaram na produção e saber delas como foi a experiência de representar na ficção uma liberdade que, contraditoriamente, elas não tinham direito na vida real. Entre os entrevistados está parte do elenco original do filme, como a atriz e cantora Abigail Kuheka, o ator Sol Rachilo e o produtor Tonie Van Der Merwe que, mesmo após o banimento do filme, ainda tinha uma cópia da película guardada, permitindo que ele fosse restaurado. Entre um relato e outro, histórias de perseguição, invisibilidade de pessoas negras nas produções midiáticas e no cinema e casos como o do ator sul-africano Ken Gampu (1929-2003) que, mesmo sendo protagonista do filme, foi impedido de entrar na sessão de estreia pelo simples fato de ser um homem negro. 

Para além de trazer os bastidores da produção do filme, o documentário também desvenda outras produções que viram no audiovisual uma forma de construir novas representações sobre os sul-africanos. Representações que, diferente do distanciamento utópico dos filmes de gênero do Esquema B, buscavam denunciar o sofrimento da maioria da população que morava em regiões apartadas e tinha de conviver cotidianamente com o conveniente descaso governamental. Nesse contexto, são apresentados trechos do documentário Bara (1979), dirigido por Kevin Harris, à época funcionário da emissora pública SABC TV, e que não se detém em mostrar apenas o hospital Baragwanath (de onde vem o título do filme), localizado em Soweto, mas também todas as dificuldades socioeconômicas vivenciadas pelas pessoas da região. Mesmo diante do pedido da emissora para que o material fosse editado, Harris exibe na íntegra e acaba sendo demitido.

Em termos de estilo, a produção segue uma abordagem bem convencional para documentário com tomadas de entrevista (talking heads) em que os participantes são filmados com fundos coloridos variados, em uma possível referência a uma África do Sul contemporânea que une pessoas de cores diversas. Intercalando com as entrevistas, são apresentados trechos de produções audiovisuais banidas, por vezes em uma relação que se limita à ilustração dos depoimentos.

Outra limitação do documentário refere-se ao próprio trabalho de pesquisa. Embora Joe Bullet tivesse sido banido, havia um cenário mais amplo de filmes que foram produzidos dentro do padrão do Esquema B – há pelos menos 50 títulos disponibilizados pelo projeto Retro Afrika Bioscope –, fato que permite compreender que as características apresentadas nesse filme não se trata de um caso isolado, mas era parte de um complexo modus operandi em que realizadores brancos recebiam financiamento do governo para fazer filmes com pessoas negras e para pessoas negras. 

O documentário também não traz um cenário de como era o cinema sul-africano anterior a esse período, a exemplos de filmes como o musical African Jim (1949) que, apesar de ter sido dirigido ainda no período colonial pelo britânico Donald Swanson, é protagonizado por pessoas negras e responsável pela revelação de Dolly Rathebe, umas das maiores cantoras de jazz da África do Sul.

E hoje, como está sendo a recepção de Joe Bullet? O filme não oferece informações sobre como tem sido a circulação do filme, sua recepção em festivais e pelo próprio público. No Brasil, dificilmente Joe Bullet seria considerado como um filme negro, pelo simples fato de ser dirigido por uma pessoa branca e não por um(a) cineasta negro(a). Por outro lado, à parte dos aspectos do seu contexto de produção, os filmes se aproximam de uma vertente do cinema negro norte-americano, a blackspoitation, que se utilizava de gêneros cinematográficos como forma de aproximação com o público negro.

A questão que fica é: como lidar com essas imagens no pós-apartheid? Seria conveniente excluir esse filme só porque ele foi dirigido por pessoas brancas em um regime que subjugava pessoas negras? E as transmissões na televisão, seria o caso de ignorá-las uma vez que elas se prestavam a fazer propaganda de um regime segregacionista? Mais do que a resposta a essa e outras questões, talvez o que Banido deixa enquanto provocação é: não basta recordar o que essas imagens foram à sua época, mas atentar para o que elas ainda tem a nos ensinar hoje.

Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2024 da Mostra de Cinemas Africanos em Salvador, ministrado pelo crítico de cinema Rafael Carvalho.