Os sortudos

por Catharina Strobel

Filme Câmera da África (Caméra d’Afrique: 20 ans de cinéma africain, 1983), de Férid Boughedir

por Catharina Strobel

“Uma cultura nacional não é o folclore”

— Frantz Fanon

“A sorte do cinema negro africano foi começar do zero, do nada. Não havia um cinema antigo contra o qual lutar. Não havia indústria do entretenimento em seu caminho. Desde o início, (…) começou com filmes reais, essenciais, dando voz a artistas que expressavam sua própria visão pessoal, de dentro.”

 — Férid Boughedir

“Então você veio aqui para ver um filme?”. O homem que nos fala é enquadrado em plano próximo. Os braços cruzados, olhar direto para a câmera. Na altura de seu rosto, é possível ler fragmentos do cartaz pendurado logo atrás:

“IA LOREN” à esquerda,

“ONY QUINN” à direita,

“TECHNICOLOR” acima.

Disfarçando com um sorriso plástico a insatisfação em ter que informar a aparente novidade, ele diz que “Aqui na África, nós amamos o cinema”. À medida que o plano abre lentamente, fica mais evidente que sua figura, trajando o que parece ser um bubu, veste típica do continente, se coloca entre o espectador, Sophia Loren e Anthony Quinn. “Falando em filmes, o que o cinema significa para o povo da África?” Ele complementa: “Para o povo do terceiro mundo, o povo dito subdesenvolvido? Os camponeses ou desempregados?”.

Essas imagens, que abrem o filme Câmera da África (Caméra d’Afrique: 20 ans de cinéma africain, Férid Boughedir, 1983), e que parecem contar com um espectador desavisado, se revelam imagens de arquivo de Les Bicots-nègres, vos voisins, filme de 1974 dirigido pelo mauritano Med Hondo. Logo de início, o tunisiano Boughedir, cineasta, crítico e pesquisador que cruzou o Saara para habitar os mesmos espaços que seus colegas entrevistados, deixa claro que Câmera da África, sua documentação dos primeiros 20 anos do cinema negro africano, se preocupará com mais do que uma compilação enciclopédica de nomes ou impressões de terceiros. Apresentar o cinema africano é familiarizar o espectador com seus rostos e pensamentos, permitindo experimentar trechos de filmes inteiros incorporados à narrativa.

Nesse quesito, o filme é um panorama com abordagem moderna: todas as diversas personalidades, perspectivas e poesias das cinematografias africanas não se separam em capítulos organizados, por país ou por tema, mas compõem um todo unificado, formando um mesmo retrato vibrante. É como a grande esperança do contexto político que pretende traduzir, o contexto em que o cinema africano nasceu.

“Eu tinha um complexo de inferioridade”, diz Boughedir em entrevista cedida ao New York African Film Festival em 2021, ocasião da exibição da mesma restauração 2K exibida na Mostra de Cinemas Africanos em 2022. “A verdadeira salvação e o choque vieram em 1966, na primeira edição do Festival de Cinema de Cartago, dedicado ao cinema árabe e africano. Havia somente um filme da África subsaariana em competição, A Negra de… (La noire de…, Ousemane Sembène, 1966). Após ver esse filme, toda a minha concepção de cinema foi derrubada”.

A Negra de… ganhou a competição em 1966 e, não à toa, Sembène é uma figura que permeia todo o documentário. Sua fala é clara, incisiva, memorável. O pai do cinema africano, como é chamado, foi uma das figuras à frente da resolução adotada por cineastas de diversos países com a criação da FEPACI (Federação Pan-africana de Cineastas) em 1970: a de desenvolver uma cultura nacional africana por meio do cinema, livrando as telas do domínio estrangeiro. Entre suas falas mais célebres, o diretor senegalês é retratado como um capitão de navio que olha sempre adiante, o céu azul ao fundo e o fiel cachimbo na mão: “A Europa não é o meu centro. É uma periferia da África. Por que ser um girassol e girar em torno do sol? Eu mesmo sou o sol!”.

A ideia soava tão simples quanto possível: com uma cultura unificada e a solidariedade entre as nações, haveria um mercado consolidado e a possibilidade de recuperação dos investimentos; as bases para uma indústria cinematográfica africana. Nesse sentido, Câmera da África nos oferece preciosas imagens dos bastidores políticos da época: desde trechos de reuniões da FEPACI, em que se discutiam próximos passos, até conversas informais entre cineastas nos diversos encontros em festivais. Esses, mais que eventos sociais ou comerciais, apresentavam oportunidades de aprender uns com os outros, comparar ideias e experiências.

Mas afinal, em que tipo de imagens consistia esse novo cinema?

A colcha de retalhos que forma Câmera da África parece nos contar mais de uma história. No início, vemos o presidente da UGC, principal fornecedora de filmes à África francófona, expressando sua insatisfação com a ausência da herança cultural africana nos filmes produzidos, acusando-os de plagiar modelos ocidentais. Depois, vemos a negação das influências de fora em uma magnífica cena de La chapelle (do congolês Jean-Michel Tchissoukou, 1980), em que crenças evangélicas são contestadas em favor da valorização de um passado africano: “Aprenda com a sabedoria de seus ancestrais”. Ao fim, no mágico A Luz (Yeelen, 1987) do malês Souleymane Cissé, os deuses respondem, sinalizam sua existência, apenas para informar que não querem se meter nos assuntos terrestres.

Passamos por ideias de rejeição da tradição africana e assimilação dos valores externos à adoção da sabedoria ancestral, a uma espécie de caminho que se abre entre recusar e corresponder a expectativas engessadas do que o cinema africano deveria ser, do que é ser “fiel à realidade”. A realidade africana é múltipla — formada, antes de tudo, pelo olhar pessoal de seus realizadores. A valiosa visão “de dentro”, como Boughedir define e vemos expressada por tantos cineastas em seu documentário.

Essa aparente contradição entre uma cultura nacional africana e as diversas realidades pessoais se dissolve no combate à condição de espectadores passivos, de meros consumidores das imagens de fora, tão comumente alheias à vida nos diferentes países do continente. Nas palavras de Med Hondo: “Se o mercado não for controlado, se um africano não for capaz de ver sua própria imagem, ele será dominado e alienado”. Em vez disso, são oferecidos filmes que servem de espelho, que olham no olho, falam a mesma língua, compartilham as mesmas experiências e sentimentos — permitindo, assim, que o espectador venha à vida, fale de volta.

Tomando a Mostra de Cinemas Africanos de 2022 como indicador, mais de 60 anos após a criação da FEPACI e 40 anos após o lançamento de Câmera da África, esse ainda parece ser o caminho. Se o cinema autoral africano se manteve “sortudo”, é difícil dizer — ele certamente não nasceu de casualidades. Basta lembrar o pertinente subtítulo de Câmera da África: “filmando contra todas as probabilidades”. Talvez se possa dizer com mais confiança que encontrar esses diversos olhares, que são todos o cinema da África e além, conversando com o que há de mais essencial na expressão de seus realizadores, faça de nós, espectadores, verdadeiros sortudos.

Catharina Strobel é formada em Comunicação Social com habilitação em Cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado. Após uma década atuando em diferentes funções da (pós-)produção audiovisual, a última delas como editora, atualmente se dedica à tradução e a compartilhar filmes usando mediação, curadoria e crítica de cinema.

Este texto foi desenvolvido no Laboratório Crítico, que aconteceu durante a edição 2022 da Mostra de Cinemas Africanos em São Paulo, ministrado pela crítica de cinema Juliana Costa.